Muitas
vezes, quando conto para as pessoas que meu trabalho de campo para tese de
doutorado está sendo realizado em uma favela
não pacificada percebo uma certa surpresa revelada em olhares,
interjeições que deflagram sustos, estranhamentos e medos. Logo depois exaltam
minha “coragem” (e um possível amor a profissão e pesquisa) e se indignam com
minha escolha. “Como você foi para lá? Não tinha outro lugar pra pesquisar? O
que os seus pais acham disso?”
Esse
questionamento e sentimentos oriundo dos outros me fazem lembrar do meu papel
de antropóloga e por sua vez tradutora de costumes e formas de expressões
socioculturais. Devo lembrar a todo instante que tamanho estranhamento vai além
de preconceitos. Na verdade o que se tem é um olhar exotizado que foi
construído e reproduzido ao longo de décadas e que tem sido reafirmado por
diferentes setores da nossa sociedade, desde a mídia até a política que assumem
planos e projetos que não condizem com o viver e pertencer a uma favela de
fato.
Cria-se
assim uma identidade de favelado, ligado à precariedade, malandragem, falta de
escolhas, marginalidade, carência, ausência de normas, cultura, regras sociais.
Esse imaginário acabou se sedimento em uma forma única de ver e julgar todo um
grupo de pessoas que são na realidade plurais, diferentes e heterogêneas. São
muitas favelas dentro da mesma favela, e dentro dessa lógica, são muitos tipos
de pessoas dentro de um mesmo grupo.
Falando
assim parece óbvio, mas não é o que percebemos na prática quando lemos os
jornais que nos dizem que os moradores de favela compram (e se endividam) todos
eletrodomésticos que podem nas Casas Bahia porque não pagam energia elétrica.
Pois
então, ao alugar uma casa na favela percebi que não é bem assim, eu tenho
“gato” de energia elétrica, de água e de Internet porque tentei contratar o
serviço regular e me foi negado. Eu, morando em uma favela não tenho o direito
de exercer minha cidadania de consumidora, pagar por um serviço. E ai
pergunta-se: Como viver sem energia, água e comunicação nos dias de hoje? Como
fazer?
Para
além dos “gatos” e gambiarras eu acesso os arranjos técnicos, dá-se um jeito
para fazer valer minha necessidade, meu interesse, minha vontade.
Muitos
podem discordar e dizer que se o serviço fosse regularizado mesmo assim muitos
moradores fariam as ligações clandestinas porque está no sangue, porque querem
vantagem, porque são assim, está na “cultura deles”.
Essas
justificativas são as que mais ouço quando trato desse assunto, e aí caímos
novamente em dois pontos cruciais: as pré-noções baseadas em histórias únicas
(sedimentadas e reproduzidas sem questionamentos) e na ideia de que a cultura
não muda, uma inverdade, costumo dizer nas minhas aulas que até um tempo atrás
quem usava mini saia eram as putas, hoje as filhas das classes médias fazem uso
da peça de vestuário de forma deliberada. Se a cultura não muda...então o que
é?
A
visão que se tem das favelas e seus moradores é um tanto simplista, única,
partidária e tendenciosa. Vivendo de perto e dividindo espaço com moradores da
favela tenho percebido outas nuances que estão guardados no campo do privado e
que de fato não fazem parte do conhecimento público.
O
conceito homogeneizador da favela
acaba sendo de fato uma armadilha para o entendimento do espaço, suas regras,
seu lugar social e mais, seus moradores-consumidores e suas formas de uso de
coisas, serviços e produtos.
Cada vez mais o consumidor
moderno tem ciência de seu poder de compra, e direito de escolha, empresas
devem tratá-lo com dignidade, respeito e sobretudo atenção, porque se não há
essa relação estabelecida ele simplesmente customiza, interfere, adapta para
que sua necessidade ou desejo sejam atendidos da forma como entendem ser a
ideal.