domingo, 16 de setembro de 2012

Licença para pensar: o modo de ver a favela e seus moradores


Muitas vezes, quando conto para as pessoas que meu trabalho de campo para tese de doutorado está sendo realizado em uma favela  não pacificada percebo uma certa surpresa revelada em olhares, interjeições que deflagram sustos, estranhamentos e medos. Logo depois exaltam minha “coragem” (e um possível amor a profissão e pesquisa) e se indignam com minha escolha. “Como você foi para lá? Não tinha outro lugar pra pesquisar? O que os seus pais acham disso?”

Esse questionamento e sentimentos oriundo dos outros me fazem lembrar do meu papel de antropóloga e por sua vez tradutora de costumes e formas de expressões socioculturais. Devo lembrar a todo instante que tamanho estranhamento vai além de preconceitos. Na verdade o que se tem é um olhar exotizado que foi construído e reproduzido ao longo de décadas e que tem sido reafirmado por diferentes setores da nossa sociedade, desde a mídia até a política que assumem planos e projetos que não condizem com o viver e pertencer a uma favela de fato.

Cria-se assim uma identidade de favelado, ligado à precariedade, malandragem, falta de escolhas, marginalidade, carência, ausência de normas, cultura, regras sociais. Esse imaginário acabou se sedimento em uma forma única de ver e julgar todo um grupo de pessoas que são na realidade plurais, diferentes e heterogêneas. São muitas favelas dentro da mesma favela, e dentro dessa lógica, são muitos tipos de pessoas dentro de um mesmo grupo.

Falando assim parece óbvio, mas não é o que percebemos na prática quando lemos os jornais que nos dizem que os moradores de favela compram (e se endividam) todos eletrodomésticos que podem nas Casas Bahia porque não pagam energia elétrica.

Pois então, ao alugar uma casa na favela percebi que não é bem assim, eu tenho “gato” de energia elétrica, de água e de Internet porque tentei contratar o serviço regular e me foi negado. Eu, morando em uma favela não tenho o direito de exercer minha cidadania de consumidora, pagar por um serviço. E ai pergunta-se: Como viver sem energia, água e comunicação nos dias de hoje? Como fazer?

Para além dos “gatos” e gambiarras eu acesso os arranjos técnicos, dá-se um jeito para fazer valer minha necessidade, meu interesse, minha vontade.

Muitos podem discordar e dizer que se o serviço fosse regularizado mesmo assim muitos moradores fariam as ligações clandestinas porque está no sangue, porque querem vantagem, porque são assim, está na “cultura deles”.

Essas justificativas são as que mais ouço quando trato desse assunto, e aí caímos novamente em dois pontos cruciais: as pré-noções baseadas em histórias únicas (sedimentadas e reproduzidas sem questionamentos) e na ideia de que a cultura não muda, uma inverdade, costumo dizer nas minhas aulas que até um tempo atrás quem usava mini saia eram as putas, hoje as filhas das classes médias fazem uso da peça de vestuário de forma deliberada. Se a cultura não muda...então o que é?

A visão que se tem das favelas e seus moradores é um tanto simplista, única, partidária e tendenciosa. Vivendo de perto e dividindo espaço com moradores da favela tenho percebido outas nuances que estão guardados no campo do privado e que de fato não fazem parte do conhecimento público.

O conceito homogeneizador da favela acaba sendo de fato uma armadilha para o entendimento do espaço, suas regras, seu lugar social e mais, seus moradores-consumidores e suas formas de uso de coisas, serviços e produtos.

Cada vez mais o consumidor moderno tem ciência de seu poder de compra, e direito de escolha, empresas devem tratá-lo com dignidade, respeito e sobretudo atenção, porque se não há essa relação estabelecida ele simplesmente customiza, interfere, adapta para que sua necessidade ou desejo sejam atendidos da forma como entendem ser a ideal.