terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Classe RC – uma verdadeira experiência Antropológica: Sim, eu fui ao show do Roberto Carlos

 

 

Em uma visita a uma tia que é apaixonada por Roberto Carlos, resolvi presenteá-la com um ingresso para ver o Rei. Confesso que estava extremamente curiosa e comprei os tickets na área da arquibancada do Maracanzinho. No dia marcado, domingo, fomos para lá com 3 horas de antecedência.
A prova – ingresso Arquibancada
Foto: Hilaine Yaccoub
Uma verdadeira horda de senhoras empolgadas e felizes fazia fila em vários pontos do estádio, dependendo da categoria do ingresso. Nós, que estávamos localizadas na área mais popular, enfrentaríamos a maior fila – que para nossa surpresa andou rapidamente.
O entusiasmo tomava conta à medida que o tempo passava e chegava a hora do início do show. Como estava em meio às camadas populares e aquele era “o evento”, resolvi ligar minhas antenas e prestar atenção no que se passava ali. Meu presente se tornava assim um exercício antropológico e, para tal, ver, ouvir e analisar seriam os primeiros passos para uma observação participante adequada.
Arquibancada: Classe RC
Foto: Hilaine Yaccoub
A primeira percepção foi o colorido que tomava conta da arquibancada: onças, zebras, cobras e estampas florais tomavam conta do espaço. Vestidos de lycra ou viscolycra de vários modelos, sempre com muitos detalhes em metais, paetês e bordados. Decotes profundos e fendas faziam a composição do look. Maquiagens, cabelo arrumado e bolsas douradas também estavam presentes ratificando a importância do evento.
Um grupo de mulheres sentado atrás de mim conversava entusiasmado:
“Ah, eu já fui a vários shows dele, A-D-O-R-O. Guardo todos os ingressos. Eu adoro guardar tudo, faço coleção, até quando vou ao jogo do Maracanã eu guardo”.
Uma outra retrucou:
“Ah, eu também guardo tudo, mas o que eu gosto mesmo de guardar é o ticket de avião, tenho vários da Gol guardados”.
Então, se fez uma pausa e uma outra se meteu na história:
“Olha, você (fazendo referência à primeira) tava aí contando vantagem que guardava o ingresso do Roberto Carlos, mas a outra veio e arrasou, pois guardar ticket de avião é sinal que ela é viajada”.
A primeira mulher respondeu: “Pois é… eu dizendo que guardo os ingressos do Maracanã e ela humilhou guardando os tickets de avião”.
A partir dessa fala podemos pensar na teoria da Objetificação do antropólogo Daniel Miller. Para ele, sujeito e objeto são inseparáveis. A cultura deve levar em conta a relação dinâmica entre indivíduos e objetos que são constituídos como formas sociais. Os artefatos, nesse caso, os ingressos ou tickets codificam os princípios culturais e expressam suas categorias em contextos diversos.
Todas as sociedades consomem, há cultura material em todas. A diferença está na atribuição do valor simbólico dado para as diferentes “coisas”. Não tem a ver propriamente e com a utilidade em si, mas, sobretudo, ao que o objeto adquirido representa para aquele que o obteve. Para Miller (2004), estamos inseridos em uma sociedade rica em artefatos e em uma uma estrutura simbolicamente rica no âmbito da nossa própria cultura material”(Ibid., p.27).
Dentro dessa simbologia da cultura material, explica Miller, estão diferentes elementos, como expressões de amor, atenção, zelo e cuidado, transmitidos por meio de objetos. Assim, “é possível que as pessoas apropriem essa superabundância de bens para realçar, em vez de diminuir, nossa afeição por outras pessoas” (Ibid., p.28). Nossos valores (assim como sentimentos) são objetificados.
Objetificação das relações
Pessoas <——–> Consumo de coisas <——–> Demonstração de valores

Voltando ao Show
Começa o espetáculo e o Rei Roberto Carlos rege sua corte com maestria: emociona, empolga e excita. Ele diz tudo aquilo que as mulheres querem e esperam ouvir. Canta as músicas que as embalaram na juventude, chama para o canto, fala manso e passa a mão no peito. É uma coreografia de anos e anos de prática. As mulheres gritam, choram, aplaudem. Funciona.
Roberto, sim, me sinto íntima depois da experiência desse show, sentado num banco alto, pega o violão, toca os acordes de Detalhes, um clássico que leva o povo ao delírio. Começo a postar fotos e comentários no Facebook. Um amigo responde dizendo que estava lá cumprindo uma promessa: havia levado sua mãe e também estava na arquibancada sentado em meio a classe C, bem próximo a mim. Depois de alguns comentários trocados, eis que surge a classificação que dá nome ao post: segundo ele estava mais para classe RC – concordei e me comprometi a escrever o post usando o título (valeu Fábio Maia).
Fábio Maia e Hilaine Yaccoub
Foto: Hilaine Yaccoub
Depois do frenesi melancólico, o Rei começa a conversar com seu séquito. Fala de amor e do cara ideal. Diz que ele existe e está por ai… A mulherada suspira concordando e ele, mais que depressa, canta “Esse cara sou eu” e o estádio vem abaixo.
Muitas já encontraram esse tal cara, outras estão ainda na expectativa. Tempo? É só um detalhe que o Rei sabe muito bem. Reencontrou o amor a pouco e divide essa emoção e alegria com suas fãs. “A esperança no amor nunca morre”, diz. A mulherada grita completamente fora de controle.
Logo após tem o momento da religiosidade: fala de Deus, de Nossa Senhora, de Jesus Cristo e o estádio se ilumina de forma diferente. Juro que parecia um culto da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma energia tomou conta, eram muitas vozes, muita fé e muita emoção. A antropóloga aqui sentiu tudo isso. Fiquei impressionada com o poder de entrega e devoção ao Rei e tudo que ele prega.
O show chega ao fim, as fãs já sabem de cor todo o script do espetáculo. Algumas já foram se encaminhando para perto do palco com a finalidade de conseguir “a rosa vermelha”. Dezenas de flores são ritualisticamente beijadas e jogadas ao público ávido pelo troféu (a objetificação da relação). Muitas conseguiram e seguravam a rosa com o devido cuidado.
Percebi que RC, ou o Rei Roberto, vai além de classes sociais, categorias ou representações. Camadas populares, ricos, intelectuais, classes médias, todos gostam ou pelo menos respeitam sua carreira, trabalho e produção musical. De fato, o show é um espetáculo que deve ser experenciado pelo menos uma vez na vida caso exista uma ponta de curiosidade e/ou vontade. Roberto Carlos não é rei da classe A, AB, C, CD. Seu séquito pertence a outra classe, a classe RC que tem expressões, aspectos e identidades muito próprias.
Foi uma experiência incrível. Eu lá, durante minha observação, participei. Cantei, chorei, aplaudi e liguei pro meu namorado pra dizer pra ele que havia encontrado o tal “esse cara sou eu”. Não sei se ele entendeu. (risos)
 
Hilaine Yaccoub
 
Referências:
MILLER, Daniel. Pobreza da Moralidade. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. N.17, p 21-43, 2 sem. Niterói, RJ, EdUFF, 2004
 
Texto originalmente publicada no site da CONSUMOTECA www.consumoteca.com.br