quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O último beijo

Uma grande e deliciosa descoberta numa quarta-feira chuvosa...



Por Robson Henriques


"Muitas vezes o paraíso e o inferno são o mesmo lugar.
Maridos que já acompanharam suas esposas em lojas de cosméticos sabem do que estou falando. Enquanto para elas é um paraíso experimentar todas as paletas de cores possíveis de batons Mac ou Shu Uemura, para eles é o inferno com ar condicionado.
Isso até o momento em que eles descobrem o preço de cada batom desses.
Nessa hora, se dão conta que o inferno tem sim subsolo e que tem um lugar reservado para eles perto do banheiro. Onde, por acaso, o ar condicionado quebrou.
Aí entramos na eterna discussão do que é supérfluo e do que é essencial.
Um conflito que nasce da percepção que cada um tem do mundo e do valor intrínseco das coisas. O delicado terreno do intangível.
O que é supérfluo para você pode ser essencial para mim.
Ou como já disse Oscar Wilde: dê-me o supérfluo que eu abro mão do essencial.
Quantas vezes já não vimos maridos criticando suas esposas por gostarem de novela? Não entendem porque elas acompanham fervorosamente, rindo, chorando, torcendo pela mocinha a cada capítulo.
E esses mesmos maridos não gritam, choram e acompanham fervorosamente as partidas de futebol de seus times pela TV?
Não é no fundo a mesma coisa?
O futebol não é a novela dos homens?
E a novela é não é o futebol das mulheres?
Entendam aqui que estou sendo propositalmente maniqueísta no exemplo acima, só a título de ilustração.
Mas… e o batom?
Assim como todos os outros aparatos da indústria cosmética e da moda, não são objetos de culto ao supérfluo, ao superficial, a frivolidade, a aparência?
Vou deixar a resposta a essa pergunta, ironicamente, para um militar: o Tenente-Coronel Mervin Willett Gonin.
Um herói da 2ª Guerra Mundial, que estava entre os primeiros soldados britânicos que em abril de 1945 libertaram os prisioneiros de Bergen-Belsen, um dos mais cruéis campos de extermínio nazista.
Reproduzo alguns trechos de seu diário, tentando ser o mais fiel possível ao contexto de seu relato.
“Não consigo dar nenhuma descrição adequada do campo de horror no qual os meus homens e eu tínhamos de passar o próximo mês das nossas vidas.
Corpos jaziam por todo o lado, alguns em montes enormes, algumas vezes jaziam sozinhos ou em pares onde tinham caído. Demorou algum tempo para se habituar a ver homens, mulheres e crianças a desfalecer enquanto passavam por eles e resistir ao impulso de ir ao seu auxílio.
Cada pessoa tinha de se habituar à ideia que um indivíduo não contava. Todos sabíamos que estavam morrendo quinhentas pessoas por dia e que outras quinhentas pessoas por dia iam morrer durante semanas até que algo que nós tivéssemos feito começasse a surtir o mínimo efeito.
Era, muito difícil ver uma criança asfixiando com difteria quando sabíamos que uma traqueotomia e alguns cuidados básicos estavam a caminho para salvar. Homens comendo vermes enquanto agarravam um pedaço de pão unicamente porque eles tinham de comer vermes para sobreviver e naquele momento pouca diferença sentiam. Uma mulher completamente nua lavava-se com sabão e com a água de um tanque onde os restos mortais de uma criança flutuavam.
Foi pouco tempo depois da vinda da Cruz Vermelha Britânica , embora possa não haver ligação, que uma grande quantidade de batom chegou. Isto não era nada do que nós homens queríamos, estávamos clamando por centenas e milhares de outras coisas e não sabíamos quem tinha pedido batom.
Só queria descobrir quem foi que o fez, foi uma ação de gênio, brilhantismo puro e inalterado. Creio que nada fez mais por estas prisioneiras que o batom. Mulheres jaziam nas camas sem lençóis ou camisolas mas com lábios escarlates. Víamos algumas mulheres vagando com nada mais que uma manta nos ombros, mas com lábios vermelho escarlate.
Vi uma mulher morta na mesa de autópsia que ainda agarrava o batom com as mãos. Finalmente alguém fez algo para tornar pessoas indivíduos novamente, elas eram alguém, não mais somente o número de identificação tatuado no braço. Finalmente elas podiam ter algum interesse na sua aparência.
Aquele batom começou a devolver-lhes a sua humanidade.”


Fonte: http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/blog-do-management/2012/06/20/o-ultimo-beijo/

domingo, 16 de setembro de 2012

A bandalha do acostamento

A antropóloga e policial rodoviária Marisa Dreys contribui com seu olhar para tratar de um assunto preocupante em nossa sociedade.

Matéria de RUTH DE AQUINO



"No último feriadão, o Brasil comemorou sua independência. Na volta de Búzios para o Rio de Janeiro, ao ver centenas de motoristas no acostamento, me perguntei quando comemoraremos nossa independência de marginais ao volante. Fotografei dezenas na Via Lagos (estadual) e na BR-101 (federal). Algumas fotos estão aqui. Enviei à Polícia Rodoviária Federal e ao Batalhão Rodoviário da PM. Transitar pelo acostamento é infração gravíssima. A multa é de R$ 574,62 e são 7 os pontos perdidos na carteira. Você pode ser multado várias vezes na mesma estrada e no mesmo dia.

Os bandalheiros são marginais porque têm consciência de que violam os direitos do outro no espaço público. Estão à margem da estrada e da lei. Além de piorar o engarrafamento, põem em risco sua vida, a de sua família e a de quem estiver no acostamento por direito: ciclistas, carros enguiçados, gente trocando o pneu, moradores locais.

Aí vai uma seleção de bandalheiros fotografados. O Fiat Uno de Petrópolis (RJ), placa GWB-0677, faz propaganda da vereadora Eliane Macharoto com slogan: “Educação e compromisso”. Compromisso com a ilegalidade. O Toyota Hilux de Ribeirão Preto (SP), placa EPS-7321, anuncia: “Deus é fiel”. O Nissan do Rio de Janeiro (RJ), placa LPH-7255, e o Hyundai de Barbacena (MG), placa HNL-6216, pressionam uma carreta. O Honda Civic do Rio de Janeiro (RJ), placa LOT-2674, é de eleitor consciente: “Eu não vendo meu voto”. Mas vende a consciência.
+Fotos: carros fotografados pela colunista trafegando no acostamento no feriadão

“Nos feriadões de turismo familiar, a infração campeoníssima nas estradas é acostamento”, afirma Marisa Dreys, chefe da Comunicação da PRF no Rio. “No último, 80% dos 1.600 autos de infração na BR-101 foram tráfego no acostamento e ultrapassagem indevida.” Havia ali, no domingo passado, 19 policiais, sete viaturas fixas, quatro motocicletas e um helicóptero, além dos carros extras de supervisão.
Quem fura fila na estrada se julga “ixperto”, mas põe vidas em risco. Isso é coisa de marginal
Formada em Direito, com mestrado em antropologia e tese sobre trânsito, Marisa passou 14 anos como policial rodoviária e colecionou histórias. Eis algumas: “O infrator diz: ‘Sou advogado’. Respondo: ‘Que bom, o senhor conhece a lei. Prazer, sou policial rodoviária federal’. O outro: ‘Mas vai me multar? Sou um cidadão de bem’. Um apela à classe: ‘Sou colega, funcionário público’. O defensor da hierarquia: ‘Mas não tem uma diferençazinha na lei para quem tem um carro melhor?’. Respondo: ‘Não, a lei é igual. No seu carro, a casa é de todos. É o espaço da rua, público’. E há as desculpas: ‘Entrei no acostamento porque várias pessoas tinham entrado e achei que não tinha problema. Os senhores me perdoam?’”.

Não, a gente não perdoa. Segundo Marisa, quando os policiais multam no acostamento, os motoristas aplaudem. E são a grande maioria. Na BR-101, passaram 90 mil veículos por dia no feriadão. Muito mais gente respeitou. Adoraríamos ver os bandalheiros apreendidos no ato – igual à Lei Seca. Perdeu. Larga o carro aí e volta de ônibus para casa. Queria ver se, no feriadão seguinte, ele transformaria o acostamento numa pista extra.

As reações dos motoristas a minha câmera variavam. O do Hyundai Tucson, placa KXZ-5685, de Saquarema (RJ), riu e fez o V de vitória. A mulher do Ford Fiesta, placa KVP-7141, de Duque de Caxias (RJ), freou no acostamento: “Você fotografou o MEU carro? Você é policial por acaso? Sua F. D. P.”. Saiu xingando. O copiloto levava uma criança no colo. Outra irregularidade.

Há tecnologia à disposição dos policiais. Câmeras, filmadoras e celulares. A nova Pistola Trucam funciona como um radar móvel e é capaz de multar 30 veículos por minuto a até 220 metros de distância. Não adianta querer um policial a cada 150 metros. É inviável. Eu, leiga, adorei os 120 cavaletes com um plástico “proibido trafegar”, colocados em 7 quilômetros da Via Lagos. Estava errada. O acostamento precisa estar livre. “Num Carnaval, um senhor tinha perdido um dedo, que estava no gelo, e corria num táxi para um reimplante no hospital, eu abri caminho com a patrulhinha”, diz Marisa.

É preciso educar, punir, fazer pressão social. A Via Lagos dá cursos sobre trânsito a professores dos cinco municípios cortados pela estrada. Em três anos, 15.550 crianças do 4o ano foram atendidas. Elas escrevem cartinhas distribuídas no pedágio para sensibilizar os motoristas.

No feriadão, houve 2.319 acidentes nas rodovias federais, com 110 mortos e 1.438 feridos. Números de guerra em tempo de festa. De janeiro a março de 2012, 10% dos atropelamentos nas estradas aconteceram no acostamento. Se você tem vergonha de furar fila de cinema porque reclamarão, pense: você se julga “ixperto”, protegido pelo vidro escuro, mas está sendo filmado. Ao furar fila na estrada, põe vidas em risco. Isso é coisa de marginal."

Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Mente-aberta/ruth-de-aquino/noticia/2012/09/bandalha-do-acostamento.html

Licença para pensar: o modo de ver a favela e seus moradores


Muitas vezes, quando conto para as pessoas que meu trabalho de campo para tese de doutorado está sendo realizado em uma favela  não pacificada percebo uma certa surpresa revelada em olhares, interjeições que deflagram sustos, estranhamentos e medos. Logo depois exaltam minha “coragem” (e um possível amor a profissão e pesquisa) e se indignam com minha escolha. “Como você foi para lá? Não tinha outro lugar pra pesquisar? O que os seus pais acham disso?”

Esse questionamento e sentimentos oriundo dos outros me fazem lembrar do meu papel de antropóloga e por sua vez tradutora de costumes e formas de expressões socioculturais. Devo lembrar a todo instante que tamanho estranhamento vai além de preconceitos. Na verdade o que se tem é um olhar exotizado que foi construído e reproduzido ao longo de décadas e que tem sido reafirmado por diferentes setores da nossa sociedade, desde a mídia até a política que assumem planos e projetos que não condizem com o viver e pertencer a uma favela de fato.

Cria-se assim uma identidade de favelado, ligado à precariedade, malandragem, falta de escolhas, marginalidade, carência, ausência de normas, cultura, regras sociais. Esse imaginário acabou se sedimento em uma forma única de ver e julgar todo um grupo de pessoas que são na realidade plurais, diferentes e heterogêneas. São muitas favelas dentro da mesma favela, e dentro dessa lógica, são muitos tipos de pessoas dentro de um mesmo grupo.

Falando assim parece óbvio, mas não é o que percebemos na prática quando lemos os jornais que nos dizem que os moradores de favela compram (e se endividam) todos eletrodomésticos que podem nas Casas Bahia porque não pagam energia elétrica.

Pois então, ao alugar uma casa na favela percebi que não é bem assim, eu tenho “gato” de energia elétrica, de água e de Internet porque tentei contratar o serviço regular e me foi negado. Eu, morando em uma favela não tenho o direito de exercer minha cidadania de consumidora, pagar por um serviço. E ai pergunta-se: Como viver sem energia, água e comunicação nos dias de hoje? Como fazer?

Para além dos “gatos” e gambiarras eu acesso os arranjos técnicos, dá-se um jeito para fazer valer minha necessidade, meu interesse, minha vontade.

Muitos podem discordar e dizer que se o serviço fosse regularizado mesmo assim muitos moradores fariam as ligações clandestinas porque está no sangue, porque querem vantagem, porque são assim, está na “cultura deles”.

Essas justificativas são as que mais ouço quando trato desse assunto, e aí caímos novamente em dois pontos cruciais: as pré-noções baseadas em histórias únicas (sedimentadas e reproduzidas sem questionamentos) e na ideia de que a cultura não muda, uma inverdade, costumo dizer nas minhas aulas que até um tempo atrás quem usava mini saia eram as putas, hoje as filhas das classes médias fazem uso da peça de vestuário de forma deliberada. Se a cultura não muda...então o que é?

A visão que se tem das favelas e seus moradores é um tanto simplista, única, partidária e tendenciosa. Vivendo de perto e dividindo espaço com moradores da favela tenho percebido outas nuances que estão guardados no campo do privado e que de fato não fazem parte do conhecimento público.

O conceito homogeneizador da favela acaba sendo de fato uma armadilha para o entendimento do espaço, suas regras, seu lugar social e mais, seus moradores-consumidores e suas formas de uso de coisas, serviços e produtos.

Cada vez mais o consumidor moderno tem ciência de seu poder de compra, e direito de escolha, empresas devem tratá-lo com dignidade, respeito e sobretudo atenção, porque se não há essa relação estabelecida ele simplesmente customiza, interfere, adapta para que sua necessidade ou desejo sejam atendidos da forma como entendem ser a ideal.

 

 

 

 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Observação in lócuo:quando o lugar é fonte de observação de práticas de consumo

Texto originalmente publicado no site www.consumote.com.br

 
Habitar está vinculado ao estar, viver junto à prática cotidiana e compartilhar espaços. Os bairros adotam pessoas, que muitas vezes tomam para si seus hábitos, seus modos de fazer, suas maneiras de falar, mudam sua própria maneira de ser e se comportar, adquirindo outros atributos, outros valores, outras artes de viver.
A antropóloga Soraya Simões em sua tese sobre a Cruzada São Sebastião do Leblon, narra a necessidade do uso das ruas e da busca do bairro como espaço de observação e a importância do pesquisador estar lá, na condição de morador, neste caso, ajustando-se a dois papéis desempenhados por ele, antropólogo e vizinho, em que “sua vida pessoal se torna inextricavelmente misturada a pesquisa”.
Há para a antropologia o famoso e referencial caso do sociólogo Willian Foote-Whyte e sua experiência no início do século XX na Escola de Chicago, relatada no livro Sociedade de Esquina, quando morou em um bairro popular, que para ele seria imprescindível “praticar o bairro como o praticavam os membros do grupo da esquina.” É importante que o pesquisador use o bairro ou a favela, absorva seus costumes e suas regras sociais, uma vez que a organização da vida cotidiana se organiza, por meio de uma forma de “comportamento” que são as suas práticas.
“O usuário (do bairro) se torna parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possível a vida cotidiana… pode-se portanto apreender o bairro como esta porção do público em geral (anônimo, de todo mundo) em que se insinua pouco a pouco um espaço privado particularizado pelo fato do uso quase cotidiano desse espaço.” (Michel De Certau, A invenção do cotidiano, 2008, p.39-40)
As práticas comuns dos usuários do bairro se estabelecem graças à proximidade e coexistência concreta cotidiana de seus moradores, que são decisivas para a identidade dos próprios usuários ou grupos, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede das relações sociais inscritas no ambiente.
Constitui-se, portanto, em uma abordagem bem diferente da empregada pelo pesquisador que, ao fazer incursões breves ou muito rápidas, não toma para si ou percebe as práticas, valores, hábitos, fazeres pertencentes àquele lugar, referenciais que ajudarão a entender práticas de consumo, escolhas, sonhos, desejos, etc.
No fim de minha empreitada, após oito meses morando em um bairro popular para a pesquisa de mestrado, eu já era vista como alguém “de dentro”, o que me possibilitou criar laços afetivos e também estabelecer relações de serviços. Essa percepção dos meus vizinhos abriu portas para que eu pudesse adentrar nas suas casas, observar seus modos de vida, suas escolhas de consumo, prioridade de compras, entre outros.
Estar lá é uma condição fundamental para entrar em contato com essas nuances comportamentais que só um pesquisador experiente poderá perceber e busca conquistar. Ao entrarmos no universo de nossos interlocutores fazemos parte de sua rede de contatos, de sociabilidade e acessamos informações do campo privado dificilmente disponível para “os de fora”, desconhecidos, sejam estes pesquisadores ou não.
Autora Hilaine Yaccoub