sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Para além do favela movie: o favelado-consumidor

Em um primeiro momento, a descoberta (ou redescoberta) da favela aconteceu por meio dos chamados favela´s movies, estilo do qual o primeiro grande exemplo foi o filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles. Um dos aspectos mais cristalizados – e, de certa forma, o mais discutível – de todo o debate provocado pela repercussão do estilo é a forma homogeneizadora de perceber o morador de favela. A abordagem do assunto é outro ponto de desconforto; eles, os favelados-vítimas; eles, os favelados-marginais; eles, os favelados que sujam, atrapalham e estragam a cidade.
É fundamental dizer que a acumulação do saber sobre “o outro” se dá a partir de uma interseção com sua vida, acumulando capital simbólico para entender seus valores, suas práticas e sua representatividade. Para entender esse “outro”, é necessário se abster de rigores, regras e critérios próprios para mergulhar nos regimes de valor de quem nos interessa estudar – nesse caso, as especificidades e particularidades das relações de consumo dos moradores de favelas.
Desse modo, da mesma forma como entendemos que o consumo se dá a partir da aquisição, é necessário entendermos não apenas o PDV e como essa relação se dá, mas também de que forma e por que motivo esse produto que está sendo mercantilizado, qual é sua eficiência ou perfeição; como são transformados, utilizados e customizados em um segundo momento. Em outras palavras, é preciso acompanhar uma biografia dos usos nas mãos dos consumidores que vão se formando, se estabelecendo e influenciando gerações, famílias e grupos sociais. Devemos perceber e observar as transformações que ocorrem com o produto, com sua forma de uso e, sobretudo, devemos observar como a relação que se inicia, como ela marca as pessoas e a sua história.
Atualmente, observamos uma grande miscelânea no trato dos temas que envolvem a favela e seus moradores. Por muitas vezes, são compartilhados dados muito superficiais, com estatísticas frias e sem cor. Ao abordar o Complexo da Maré no plano simbólico, Silva (2001) percebeu que a favela ganhou fama nos meios de comunicação pelos eventos de violência envolvendo disputas entre os grupos criminosos armados que brigam, faz tempo, pelos territórios locais para venda de drogas – e, também, contra a polícia. Nesse contexto, a representação dos cariocas sobre a Maré – e, especialmente, a favela de maneira geral – vem-se caracterizando somente como um espaço violento e destituído de condições dignas de vida. Em que pese o fato de ter generalizado um juízo preconceituoso sobre as populações das favelas, há, de concreto, nessas localidades, uma significativa diferenciação socioespacial que se verifica a partir da conformação desses residentes como sendo, em sua maioria, pessoas de origem nordestina, negras, com pouca escolaridade, sem qualificação profissional e, consequentemente, com nível de renda baixa. A grande questão é que essa é uma visão limitada desse contexto.
Em nossos dias, o contexto da favela começa a ser desconstruído com a entrada das UPPs. Esse movimento é o abre-alas para jornalistas, empresas e agências que olham com olhos de curiosidade e cobiça para esse mercado consumidor – os favelados que compram (e se endividam). As inserções estão sendo feitas, mas que critérios são utilizados? Será que há, de fato, um acompanhamento dessa biografia dos usos, dos regimes de valores e de tudo o que permita que se tenha legitimidade para falar por eles, aos favelados-consumidores? Mais uma vez a história se repete e vemos uma série de novos especialistas que entram na favela, fazem meia dúzia de fotografias, conversam com uma dezena de moradores e saem dali encantados com o novo mundo… e viva o estereótipo e a rotulação! A imagem do morador de favela continua homogeneizada. A diferença é que essa imagem não é mais a de vítima, mas a de novo consumidor ávido por novos produtos e serviços, que serão desenvolvidos, criados e customizados para eles. Mas quem são esses favelados-consumidores?
Assim como Silva (2001), Valla (1986) aponta a existência de diferentes identidades e rendas dentro da mesma favela. Desse modo, perceber o favelado como uma figura única (homogênea) – ou criminosa, ou dotada de carências absolutas, ou dona de um gosto ou desejo único – é, no mínimo, estigmatizante e ingênuo. Pesquisas recentes[1] apontam o crescimento da renda das classes mais baixas, chamadas de classes populares. Muitos indivíduos tiveram seus patrimônios aumentados devido ao Plano Real e à possibilidade de compras parceladas.
Ao pesquisar políticas de remoção no Rio de Janeiro, Valladares (2005) aponta:
“É vigente a imagem estigmatizada do favelado qualificado como parasita do Estado, marginal, que precisa ser eliminado do espaço em que encontra e replantado em outras áreas distantes, não visíveis. Enfatiza-se a favela enquanto aglomerado que “atrapalha” o dia-a-dia da classe média [...]”.
Ainda somaria a esta colocação o fato de esses grupos de camadas populares pertencentes às favelas serem acusados de consumirem energia elétrica sem pagar e de fazerem “gatos” de todos os outros serviços – TV a cabo, internet, água, etc. Ou seja, sempre há moralidades e restrições. Novamente estamos diante do bom consumidor favelado, aquele que paga as suas contas ou que tem desejo de pagar e o do mau consumidor favelado, o marginalizado que compra a TV de LCD e não paga suas contas; um grave erro e problema da sociedade de consumo, desvios e rotas que não estavam no contexto das relações mercantis.
Para além de critérios classificatórios, é necessário viver essa experiência. Por conta disso, realizo meu trabalho de campo em uma favela carioca como uma moradora, consumidora… uma pseudofavelada, sim, mas com olhos e critérios valorativos abertos e flexíveis para entender como as práticas e relações se dão para além do PDV.
É nessa jornada de entendimento do outro, seja ele favelado ou não, que a Antropologia segue contribuindo com seu método e com sua interpretação. Inspirando interessados nesse mergulho em outras realidades, outras crenças, outros regimes e outras práticas, em um fazer etnográfico pautado no esforço da compreensão de um mundo nem pior, nem melhor, apenas diferente do seu.
Hilaine Yaccoub
[1] Como a pesquisa realizada pela FGV, ver NERI, Marcelo (coord). A nova classe média. Rio de Janeiro, FGV/IBRE, CPS, 2008.
Referências:
SILVA, Jailson de Sousa A Pluralidade de Identidades no Bairro Maré – Rio de Janeiro. Revista GEOgraphia, vol. 3, no 5, 2001. Disponível aqui. Acesso em 20 abr. 2010.
VALLA, Victor V. (Org.). Educação e Favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985. Petrópolis/ RJ: Editora Vozes, 1986.
VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.