quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Carta Capital: "A nova classe média: fantástica falácia"

Extremamente relevante a da matéria Carta Capital.  Clara e objetiva, Fundamental em tempos de aposta política em uma ilha da fantasia chamada favela. Se olharmos para traz podemos ver que o Estado e as instâncias de poder (como as elites) tentaram primeiramente  incendiá-las expulsando de forma grotesca os excluídos, eles incomdavam apesar de necessários para limpar as casas e as privadas alheias, Depois tentaram remover para longe em conjuntos habitacionais distantes e sem qualquer infraestrutura, Logo em seguida partiram para reforma e maquiagem (favela bairro por exemplo), ai então integrar (morar carioca) a favela na cidade e isso inclui pagar impostos, claro. E agora querem deixar como está para que o turismo do exotismo cresça, afinal de contas os "favelados" estão consumindo, estão virando classe média "ou gente", então gringos venham que a gente não morde, a gente vai rir pra vocês com todos os dentes na boca.

No entanto, em minha pesquisa vejo e sinto que ha sim um otimismo, há em determinados grupos a melhora de vida não só pelo acesso e consumo de bens mas através da inserção nas universidades, melhoria das habitações, maior conforto, acesso a serviços como a TV a cabo que expande sim horizontes e promove aprendizado... no entanto, falar em felicidade full time... bem forçoso. 

As pessoas procuram momentos de felicidade e diversão com o que tem e o que alcançam, e é assim que funciona pra todo mundo, não? Acompanhei nesse final de semana  um desentupimento de esgoto, com direito a mau cheiro e no mesmo lugar pessoas curtiam seu domingo fazendo churrascos, tomando sorvete, vi risadas, diversão mesmo. As crianças tomavam banho de mangueira apesar da favela estar com borrachas espalhadas por todos os lugares devido a falta de água. 

Da pra entender a lógica? Nem tanto ao céu, nem tanto a terra. As pessoas vao encontrando modos ou meios de ter breaks e isso faz parte do jeito humano de viver... essa diversão comumente coletiva, sempre compartilhada e agregadora. Enquanto faltava água na favela inteira, aqueles moradores que tinham água, partilhavam suas bicas e borrachas espalhadas faziam a alegria das crianças. Uma senhora sentada numa cadeira, controlava a água e dava banho de mangueira na garotada que jogava futebol. Estavam sem água, mas se divertiram porque afinal de contas era domingo!

Leiam a matéria abaixo:


A nova classe média: fantástica falácia

Apesar do discurso oficial, não é saudável sentir cheiro de esgoto, viver em área de risco, conviver com ratos e demorar 3 horas para chegar ao subemprego
por Joseh Silva — publicado 26/02/2014 09:09, última modificação 26/02/2014 12:09

"Na edição de domingo 23, o programa semanal Fantástico, da Rede Globo, exibiu uma reportagem que revelava o resultado da pesquisa aplicada pelo Instituto Data Popular sobre pessoas que não querem sair de suas comunidades. Moradores de 66 favelas de 10 estados do País responderam às questões.
A matéria fez recortes de histórias e personagens que dialogam diretamente com a falácia da nova classe média – o legado do governo Lula e a garantia de reeleição de Dilma Rousseff. Claramente é um apontamento para maquiar o que de fato acontece em favelas de todo o Brasil.
O tom da narrativa da reportagem é de fora para dentro. Sem novidades. Na prática, é uma apresentação institucional das favelas para os gringos que já estão embarcando para a “pátria amada”: “olha como eles comem”, “vejam como se divertem”, “casas assim são comuns”. Pois é: eles não mordem (não precisa fechar o vidro dos carros), gostam de onde moram, não vão sair do gueto, da senzala. Não irão mexer com vocês.
Desde a confirmação de que a Copa do Mundo aconteceria no Brasil, a emissora vem fazendo constantes esforços para mostrar que a favela é formidavelmente exótica. Apela para a produção de novelas nos morros do Rio e mostra histórias surpreendentes de pessoas de comunidades em programas como Caldeirão do Huck, Esquenta e Faustão. E opta por não evidenciar que só o fato de a favela existir já é um sintoma social: as coisas não estão da forma como deveriam estar.
O Brasil passa por um momento de hipocrisias. A mídia convencional cumpre à risca o plano de manipulação de massa. O governo federal não se pronuncia sobre questões contemporâneas de expressão social: o genocídio da juventude pobre e negra; a desmilitarização da Policia Militar, as demarcações de terras indígenas e quilombolas.
Não assumindo posicionamentos, o governo corrobora com a violência institucionalizada que vem acontecendo diariamente nas periferias, que passam por tempos de cárcere social. Quem mora nas favelas não pode ficar na rua depois das 22 horas, pois corre o risco de morte, de apanhar, de sumir e de ser agredido psicologicamente. Na mesma sexta-feira em que policias agredem jovens negros na periferia, na Vila Madalena, em Pinheiros, nos Jardins se pode ficar a noite inteira na rua.
Isso ilustra uma situação. Há, no mínimo, duas formas de tratamento da população no estado de São Paulo: para a burguesia, a policia serve e protege; para a periferia, age com opressão e violência.
Ainda sobre a reportagem, o que chama a atenção são os personagens. Um nordestino que foi tentar a vida no Rio de Janeiro e conseguiu estruturar dois restaurante com uma “generosa clientela” na Rocinha, maior favela da América Latina. Favela onde circulam mais turistas no estado. Um jovem que vive de eventos organizados nas comunidades. Uma moradora que instalou uma piscina no fundo da casa. É a afirmação do paradigma: o dinheiro traz felicidade. Se a sensação implantada é essa, reclamar pra quê?
Obviamente, quem vive nesta condições em numa favela não vai sair. Mas é só questionar uma senhora que teve seus filhos agredidos ou assassinados se ela deseja continuar na favela. Será que quem passa por ameaça de remoção por conta da Copa, ou está pagando absurdo de aluguel, quer morar na favela?
O plano segue com perfeição: os 11 anos de incentivo pesado na inclusão pelo consumo têm efeitos colaterais desanimadores. O discurso do senso comum é disseminado em qualquer roda de conversa:  "Lógico, tio. Quem não quer fazer um 'rolezinho' com as novinhas, por um tênis dos mais caro, boné e camisa pesadona, colar no fluxo pesadão, tá ligado. E carro? E moto? Tudo zero, 'fião´'”, diz o Adolescente Renan Cordeiro, 17 anos, Morador da Vila Calú, extremo sul de São Paulo.
Maria da Dores, a Dorinha, sente orgulho ao olhar para a casa e observar tudo o que conquistou. “Esse armário comprei em 10 prestações, terminei de pagar faz três meses e já está todo mofado. Aqui não tem ventilação. O sofá paguei em três vezes e a geladeira consegui numa promoção junto com a máquina de lavar, dei muita sorte. Não é com todo mundo que isso acontece não.”
Renan parou de estudar na sétima série. Apesar de andar na “picadilha”, mora com a mãe e mais três irmãos em um barraco de um cômodo dividido por um guarda-roupas. O fogão é sustentado por blocos. Perto da sua porta há um córrego. Saneamento básico nunca existiu. Mesmo assim tem sonhos de consumo: “tio, quero uma Hornet, ai ninguém me segura”.
Assim como Renan, Dorinha também parou de estudar no ensino fundamental, mas pensa em concluir os estudos. O maior desejo é "comprar uma casinha fora da favela".
Apesar da casa mobiliada com a linha branca e televisão de 46",queixa-se das escadarias que precisa subir e descer todos os dias para sair e chegar em casa, das dores nas pernas, do som alto do vizinho adolescente; do medo de desabamento em dia de chuva - o lugar onde ela mora, aconteceu um desmoronamento em 2004, e do preço do aluguel: "homi, é muita caro, né? Uma casa de três cômodos na favela, neste lugar, custando 500 reais. E o dono ainda quer aumentar. Só não fez porque é gente boa".
A inquietação de Maria da Dores não é pontual nem restrita à situação de uma favela. A especulação imobiliária vem sistematicamente afastando cada vez mais quem não tem condições de pagar aluguéis astronômicos para as bordas das grandes cidades. Hoje, ter casa na favela para alugar é garantia de aposentadoria.
A felicidade pautada na perspectiva do consumo é o reflexo de um modelo de desenvolvimento que prioriza as relações com grandes empresas, multinacionais e bancos. Ou seja, onde tem capital há interesse. Segundo o Data Popular, as favelas geram por ano cerca 63 bilhões de reais. Por isso vale a pena mostrar a favela como um lugar formidável.
Os recursos não permanecem nas favelas. O ciclo da economia gira em torno das grandes redes. Vale a pena colocar uma Besni, um Itaú e uma Casas Bahia em uma favela: em alguns estados o governo oferece como contrapartida isenção de imposto para as empresas - uma espécie de insalubridade, a mão de obra é barata, o povo paga as contas em dia, mesmo com a geladeira, adquirida por pressão no intervalo da novela, que anunciava a redução do IPI, vazia.
Encher a geladeira nova ainda é um sonho, e para realizá-lo, há pessoas que continuam pegando resto de comida em lixos de condomínios – dias de terça, quarta e sexta-feira, Dona Rute, moradora do Capão Redondo, fica até 2h da madrugada vasculhando lixos em busca de materiais recicláveis, e torcendo para achar comida. Adolescentes estão olhando carros nas feiras de rua para ajudar no orçamento da família – nas pontas das feiras, há sempre jovens esperando um veículo encostar para dar uma olhada. Pessoas ainda estão morando em áreas de mananciais e de risco – haja vista as ocupações em regiões da represa Guarapiranga e Billings. O crescimento desordenado continua. A juventude periférica ainda é tratada com preconceitos e vem sendo exterminada com o aval do governo – segundo a Secretaria de Segurança Pública, mais de 500 jovens foram assassinados em 2012. Há comunidades onde não tem saneamento básico – como o bairro Chácara Bandeirantes, distrito do Jardim Ângela.
É de extrema crueldade maquiar fatos tão importantes sobre a vida em favelas do Brasil. Pois é necessária a presença dos governos nas comunidades para executar políticas públicas de segurança, educação, cultura, saúde e lazer. Não dá para ficar à mercê do "jeitinho brasileiro". Não é saudável acordar sentindo cheiro de esgoto, viver em uma casa que a qualquer momento pode desmoronar, dividir espaço com ratos, demorar três horas para chegar a um subemprego.
A periferia não pode aceitar o discurso mentiroso sobre a nova classe média. Não tem como ignorar o fato de que a educação é um negócio, que é importante ter um sistema público educacional ruim para favorecer o mercado da rede particular de ensino (o mesmo vale para o sistema público de saúde). Ninguém está falando de uma elite que explora 80% da população. Mentiras não devem ser transformadas em verdades: a nova classe média é utópica."

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia/a-nova-classe-media-fantastica-falacia-7725.html/view













terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Antropólogos, a arma secreta das empresas


"uma empresa de estudos de mercado pergunta o que as pessoas querem ou fazem, um antropólogo vê o que elas realmente fazem e consegue perceber o que querem"

Deslocam-se ao terreno, percebem
os consumidores melhor do que ninguém
e descobrem o que falta nas suas vidas. Sem darmos por isso, os antropólogos entraram
no mundo dos negócios Ana Rita Faria (texto)
a Para uns, é o estudo da evolução do homem ao longo dos milhões de anos em que habita o planeta Terra. Para outros, uma ciência que se confunde com as ossadas dos dinossauros, os vestígios de civilizações antigas e até a figura heróica de Indiana Jones. O mistério reina em torno da antropologia mas, no mundo actual, esta disciplina está a ganhar cada vez mais espaço dentro das empresas.
Algumas das maiores companhias mundiais, como a Microsoft, Nokia e IBM, integram antropólogos nas suas equipas, que as ajudam a conhecer melhor os apetites dos consumidores e a pensar em novos produtos. Só a Intel tem 25 profissionais desta área e foi neles que se alicerçou para deixar de ser apenas uma fabricante de chips e passar a vender directamente ao consumidor (ver texto na outra página).
Mas, em termos práticos, o que fazem realmente os antropólogos dentro das empresa? O ponto de partida é usar os tradicionais métodos antropológicos - observação minuciosa, entrevistas aprofundadas e documentação sistemática - para conhecer os consumidores e ver o que falta nas suas vidas - o telemóvel ideal, uma mobília para a casa, um computador diferente. Segue-se o trabalho com designers e engenheiros para os ajudar a conceber produtos e serviços que encaixam nessas necessidades.
Os exemplos abundam. Foi com a ajuda de antropólogos que a Intel criou o seu portátil para os mercados emergentes (e que, em Portugal, deu origem ao "Magalhães") e que a Apple criou uma organização diferente no "desktop" dos seus computadores. É também graças a estes profissionais que a Samsung está a tentar repensar as suas televisões na era digital e que a Nokia foi a primeira a lançar telemóveis com várias listas de contactos.
Contudo, nem sempre se trata apenas de desencantar um novo produto ou serviço que conquiste os consumidores. Há alturas em que os antropólogos mudam realmente o próprio curso dos acontecimentos dentro de uma empresa e a sua estratégia. Foi o caso da Lego.

Uma incursão ao mundo dos brinquedos e da TV
Quando Jorgen Vig Knudstorp assumiu a direcção da fabricante dinamarquesa de brinquedos em 2004, o cenário era catastrófico. As vendas caíam a olhos vistos, o custo de produção era elevado e as dívidas não paravam de aumentar. Foi neste contexto que a ReD Associates foi chamada a intervir.
Composta por antropólogos, sociólogos e psicólogos, esta consultora dinamarquesa já trabalhou para empresas como a Adidas, Vodafone e Coca-Cola mas teve na Lego um dos seus maiores desafios. "A empresa tinha perdido a sua relação com as crianças", explica ao PÚBLICO Christian Madsbjerg, membro da consultora.
Para perceber o que se passava, a equipa de cientistas sociais passou quatro meses a trabalhar com um grupo de 100 crianças. Falaram e brincaram com elas, acompanharam-nas na escola, estiveram em casa com a família e, no final, descobriram onde estava o problema: todas as pressuposições da Lego sobre como as crianças gostavam de brincar estavam erradas.
"A Lego pensava que as crianças gostavam mais de playstations, de jogos fáceis e de encontrar instantaneamente diversão nas brincadeiras", explica Christian Madsbjerg. Mas a realidade era bem diferente. "Os miúdos continuavam a gostar muito de brincadeiras físicas, de coisas difíceis e não se importavam de perder tempo a descobrir como resolver o enigma de um brinquedo", conclui. A Lego teve então de mexer nas peças do seu negócio, acabar com alguns produtos e criar outros. As crianças voltaram.
Um desafio parecido colocou-se mais recentemente a Christian Madsbjerg, mas desta vez vindo das televisões, com a sul-coreana Samsung. Durante os últimos dois anos, a equipa do cientista social (que não é formado em antropologia mas sim em ciência política e filosofia) trabalhou em 14 países para ver como as pessoas usam as novas televisões de ecrã plano. "Apesar do sucesso inicial destas televisões, o seu preço estava a ser empurrado para menos um terço e o volume de vendas começou a cair", revela Christian Madsbjerg. Para a Samsung, era preciso dar a volta à situação.
Ao olharem para o modo como as pessoas usam a televisão hoje em dia e como ela se conjuga com a tecnologia, os antropólogos perceberam que algo tinha de mudar. "Em primeiro lugar, a televisão tinha de deixar de ser um pedaço de electrónica para ser uma peça que faz parte da mobília", diz Christian Madsbjerg.
Em segundo, tinha de deixar de ser apenas uma televisão para ser um "software", uma espécie de computador gigante com um tipo diferente de interacção. Como os resultados do projecto ainda estão a ser desenvolvidos e aplicados pela empresa, Christian Madsbjerg não pode adiantar muito mais. Mas uma coisa é certa: se um novo conceito de televisão sair em breve das fábricas da Samsung, terá uma costela de antropólogo.

Ir além da pesquisa
de mercado
Enquanto na Europa o mais comum é as companhias recorrerem a pequenas ou médias empresas de consultoria e pesquisa etnográfica como a ReD Associates, nos Estados Unidos os antropólogos ganharam entrada directa nos negócios. Mas, tanto num caso como no outro, estão a tornar-se cada vez mais populares.
Segundo Ken Anderson, 53 anos, um dos 25 antropólogos da Intel, "as empresas perceberam a necessidade de conhecer as pessoas mais profundamente, os seus valores, esperanças, sonhos e os desafios que enfrentam, de modo a conceber e vender produtos". Para este antropólogo, as pesquisas de mercado já não suficientes, até porque só mostram uma face da realidade.
Ao deslocaram-se ao terreno onde as pessoas vivem e trabalham, onde compram e onde se divertem, os antropólogos conseguem descobrir as suas necessidades, mesmo aquelas de que as próprias pessoas não se deram conta. A diferença é clara: uma empresa de estudos de mercado pergunta o que as pessoas querem ou fazem, um antropólogo vê o que elas realmente fazem e consegue perceber o que querem.
Na base, um princípio semelhante ao que o norte-americano Henry Ford seguiu quando, nos primeiros anos do século XX, lançou a Ford: "Se tivesse perguntado às pessoas o que queriam, elas teriam dito cavalos mais rápidos". Nunca carros. Mas não, Henry Ford não era um antropólogo, por mais faro que tivesse. Na verdade, os primeiros antropólogos só começaram a fazer a sua entrada no mundo dos negócios algumas décadas mais tarde, por volta dos anos 30.
Nessa altura, as empresas aproveitavam as ciências sociais, incluindo a antropologia, para descobrir como tornar os seus trabalhadores mais produtivos. Só a partir dos anos 60 e 70, quando os gurus da gestão coroaram o consumidor como rei, é que algumas companhias começaram a recrutar antropólogos e outros cientistas sociais para conhecer melhor o seu público. A Xerox, empresa norte-americana conhecida por ter inventado a impressora, foi a pioneira.
Em 1979, dois antropólogos - Lucy Suchman e Julian Orr - integraram o centro de estudos da Xerox para estudar como as pessoas interagiam com a tecnologia. Ao observarem e filmarem a forma como era usada uma fotocopiadora, os investigadores perceberam que as pessoas tinham bastantes dificuldades em fazer uma mera fotocópia. Faltava simplicidade. A solução foi um botão verde a dizer "copy" ("copiar") em todas as máquinas da marca. E, ainda hoje, por mais funcionalidades que as fotocopiadoras possam ter, o botão continua lá.
Desde esses tempos cada vez mais antropólogos têm-se infiltrado no mundo das empresas. Actualmente, constata Christian Madsbjerg, "todas as grandes empresas mundiais que ainda não têm este tipo de profissionais estão a pensar recrutá-los, porque já viram que funciona". Para o responsável da ReD Associates, isso vai fazer com que a antropologia corporativa se torne, dentro de cinco a sete anos, uma "prática normal" dentro das empresas e não "especial", como ainda é vista hoje em dia.
Alex Taylor, sociólogo da tecnologia a trabalhar na Microsoft, partilha da mesma opinião. "A tendência é que as empresas tenham pelo menos alguém que possa fazer trabalho de campo". Para o profissional, que imerge no dia-a-dia dos consumidores em busca de novas ideias para a empresa (e sobre as quais se fecha em copas), a pesquisa antropológica "tornar-se-á um emprego fixo nas grandes empresas que lidam com os consumidores".

Fazer tábua rasa e desafiar preconceitos
Foi sobretudo com as empresas tecnológicas que a importância dos antropólogos se tornou mais visível. A intensa competição criada com a explosão da Internet e das tecnologias da informação fez com que os executivos do sector precisassem cada vez mais de saber como é a tecnologia afecta os consumidores e como eles reagem a ela. Isso permitiria avaliar qual o impacto dos produtos antes do seu lançamento no mercado, o que é fundamental para as empresas dado o elevado custo de fabrico dos produtos tecnológicos, mas também a noção (já provada em vários estudos) de que pelo menos 75 por cento desses novos produtos falham pela falta de um mercado.
Além disso, a entrada das empresas tecnológicas nos países emergentes tornou a pesquisa antropológica, mais do que uma vantagem competitiva, uma necessidade. É o caso da finlandesa Nokia, onde vários antropólogos trabalham com a equipa de design para "ajuda a criar novas ideias de como os telemóveis irão ser, funcionar e ser usados no futuro", explicou ao PÚBLICO Jan Chipchase.
Nos projectos que realizou recentemente na Índia e no Uganda, Jan percebeu que era preciso desafiar uma suposição errada: a de que os telemóveis são um produto individual. "Para muitos, o telemóvel é algo partilhado, usado por toda a família ou até alugado por empresários locais para uso de toda a aldeia", evidencia. Mas, sendo assim, faltava uma coisa aos telemóveis: listas de contactos diferentes para cada utilizador. Foi essa a aposta da Nokia.
Esta necessidade de pôr em causa conceitos pré-estabelecidos ou, melhor dizendo, de partir para o terreno sem nenhuns é o ponto de partida da pesquisa antropológica. "Começamos com um cenário limpo, sem hipóteses à partida, e prestamos atenção a todos os detalhes da realidade", explica ao PÚBLICO Melinda Rea-Holloway, 43 anos, socióloga que está à frente da Ethnographic Research (ER), uma das muitas empresas nos EUA que faz pesquisa etnográfica para grandes companhias. Pelas suas mãos, e dos colegas antropólogos, passaram empresas dos mais variados sectores como a Dell, Electrolux, Kellog's, Novartis e M&M Mars.
Um dos métodos mais usados pela ER é gravar em vídeo a maioria das suas intervenções no terreno. Contudo, realça Melinda Rea-Holloway, a pesquisa antropológica não pode ficar-se pela simples observação. Apesar de esta poder demorar meses ou até anos, é com a análise que os antropólogos têm de gastar a maior fatia do seu tempo. "Se gastar quatro horas a observar ou falar com alguém, preciso de 16 a 20 horas para analisar o material e tentar descobrir padrões e tendências", conclui.
Ed Liebow, 55 anos, sabe bem o tempo gasto com a profissão. O investigador, que é um dos 20 antropólogos a serviço da Battelle (organização norte-americana da área da ciência, saúde e tecnologia), trabalhou durante 15 anos com um grupo de físicos para tentar perceber o grau de contaminação a que as pessoas tinham sido expostas, com a produção e teste de armas nucleares nos EUA.
"Todos os modelos que havia baseavam-se em pressuposições eurocêntricas de quanto tempo as pessoas passavam fora de casa, o que comiam, que tipo de casas tinham", explica Ed Liebow. Ao substituir essas hipóteses pela observação directa, Liebow conseguiu mostrar que a exposição era bem mais elevada em alguns casos, permitindo melhorar os serviços de saúde a essas comunidades.

Portugal à margem
Extremamente atractiva para as empresas tecnológicas, mas também para as da saúde, banca, retalho e entretenimento, a antropologia está a conseguir conquistar ainda uma outra actividade: o marketing. Através dela, os antropólogos a trabalhar na publicidade conseguem fazer análises culturais e repensar problemas ligados a uma marca.
"A vantagem de um conhecimento mais profundo do consumidor ajuda a guiar o marketing em direcções mais criativas e a criar anúncios mais provocantes", diz Timothy Malefyt, 48 anos. O publicitário despertou para o mundo da antropologia depois de fazer o seu doutoramento em Espanha, a estudar símbolos nacionais de performance (como a música e dança flamengas). Hoje, dirige a unidade de pesquisa "Cultural Discoveries" ("Descobertas Culturais") da agência BBDO, enviando antropólogos para o terreno estudar o significado das marcas na vida das pessoas.
Em Portugal, parece ser só através do marketing que a ligação dos antropólogos às empresas ganha alguma visibilidade. De acordo com Susana Matos Viegas, presidente da Associação Portuguesa de Antropologia, alguns profissionais dessa área, ligados a centros de investigação ou universidades, estão a colaborar com empresas publicitárias. Contudo, "não é empregabilidade segura, mas apenas colaborações esporádicas", realça.
Um desperdício? A julgar pelo sucesso que estes profissionais têm tido dentro das empresas, poderia dizer-se que sim. Descoberta a sua capacidade de ver os consumidores ao microscópio, os antropólogos renasceram para o mundo dos negócios e, como diz Ed Liebow, estão a "dar vida aos números".
a A Xerox foi a primeira empresa a ter antropólogos, em 1979.
a A Intel é a empresa com maior número de antropólogos: 25.
a Muitas companhias, como a Microsoft, IBM ou Nokia têm equipas de antropólogos, enquanto outras (Lego, Samsung, Kellog's, Pfizer, etc) contratam empresas de pesquisa antropológica.
a Várias empresas de marketing têm integrado nas suas equipas antropólogos e outros cientistas sociais.
a Em geral, a pesquisa antropológica envolve uma observação minuciosa (em que o investigador pode participar ou não), entrevistas (em que é o entrevistado a orientar todo a conversa e não o entrevistador) e uma análise aprofundada, apoiada em teorias da ciência social.
a Os antropólogos ajudam as empresas a perceber as necessidades dos consumidores, identificar oportunidades comerciais viáveis e estratégicas, minimizar o risco de inovação e desenvolver produtos mais eficazes do que a concorrência.

Christian Madsbjerg,
da ReD Associates 
Fonte: http://www.publico.pt/sup-economia/jornal/antropologos--a-arma-secreta-das-empresas-303210