RIO — Um passado sem rosto e sem rastro transformou a figura da mãe
numa pálida lembrança. E levou consigo a imagem da menina Camila,
ex-moradora de rua, sem deixar na adulta a certeza de como era quando
criança. Com a morte da mãe no parto do oitavo irmão, há nove anos,
depois de peregrinar com os sete irmãos pelas ruas de diversos bairros
do Rio, ela ganhou uma casa. Foi morar com a tia, em Duque de Caxias.
Cada irmão seguiu para viver com um parente.
A história da família Gomes, até a geração de Camila Claudia, hoje
com 21 anos, é apenas oral. Não há um único registro fotográfico dessa
vida nômade. Nem fotos, nem documentos. Camila não tem certidão de
nascimento, o que impede o acesso aos direitos mais elementares. E não
se lembra de ter visto fotos da mãe.
Uma aflição latente ficou de herança. Os nascimentos de Camille, de 2
anos, e Sofia, de 5 meses, trouxeram um novo desejo à vida da menina
sem foto. Há pouco menos de dois anos, ela comprou um celular com
câmera, exclusivamente para fotografar a primeira filha.
Camila tem a chance agora de deixar impressa sua passagem pelo mundo.
Ela ilustra farta variedade de estatísticas que apontam para o consumo
crescente de celulares e câmeras digitais no país, instrumentos também
de inclusão. Nos últimos três anos, o item de consumo que mais cresceu
no Brasil foi a câmera digital (de 20% para 35%), indicam dados da
consultoria Kantar Worldpanel, divulgados em setembro. Um estudo da
Fecomércio do ano passado mostra que, de 2003 a 2009, o gasto com
celular já havia aumentado 63,6% em todas as classes sociais. Na E,
chegou a 312%.
Soma-se a estes um outro dado, e a equação se completa: cerca de 66%
dos brasileiros usam o celular para tirar fotografias, segundo pesquisa
do Instituto Data Popular colhida este ano.
A democratização do acesso se consolidou, confirma a assessora
econômica da Fecomércio-SP, Kelly Carvalho. A oferta maior de crédito, a
ascensão das classes C, D e E, e a popularização irreversível da
internet são agentes dessa revolução nos costumes:
— Hoje é quase impossível imaginar alguém que não tenha acesso a isso.
A antropóloga Hilaine Yaccoub, uma das autoras do blog Consumoteca,
que analisa hábitos de consumo das classes C, D e E, atesta que estamos
diante de novos tempos, moldados pela democratização do acesso ao
registro de imagens. Tempos em que as classes populares deixaram de ser
apenas o objeto fotografado (e, mesmo assim, discretamente) e
tornaram-se também agentes desse universo pictórico: são produtores, em
escala crescente, de imagens de seu cotidiano.
— A história oral da vida das famílias passa a ter um registro. As
fotografias são uma narrativa, uma forma de contar a própria vida.
Sempre quem tirava as fotos era gente de fora desse grupo social mais
popular. Agora são eles falando e retratando a si mesmos. Antes, o
processo era mais caro e mais complexo. Agora, é uma possibilidade de
registros de descobertas. Muitas dessas descobertas são relacionadas a
consumo, sabores, viagens — ressalta Hilaine.
Esse registro cotidiano era impensável em outros tempos. Antes da
fotografia, no século XIX, apenas os muito ricos conseguiam pagar pelo
registro, em pintura, de seus retratos.
— O homem comum não tinha esse acesso. Quando a fotografia surgiu,
foi a oportunidade de a burguesia emergente ter acesso a um tipo de
imagem de si mesmo que até então só a aristocracia fazia — narra o
pesquisador e fotógrafo Pedro Karp Vasquez.
Enquanto comprava o celular, a prestação, Camila Claudia buscava um
jeito de se registrar formalmente. Chegou a procurar em quatro cartórios
de Duque de Caxias, sem o menor indício do lugar onde nascera. Ela diz
que sabe seu nome porque a tia assim contou. Mas não consegue provar sua
existência em nenhuma instância oficial. Enfrentou seu maior drama
quando Camille nasceu, numa maternidade em Caxias: foi impedida de sair
do hospital, porque não tinha como registrar a filha. Conseguiu uma
autorização provisória, mas teria que providenciar os documentos. Antes
disso, deixou a cidade e mudou-se para um casebre de três cômodos, na
Gamboa.
Notebook para guardar fotos das filhas
A agonia se repetiu com o nascimento de Sofia. E ela se comprometeu
novamente a providenciar os documentos. Antes disso, comprou, com a
ajuda do marido, que ensaca farinha em um moinho, um notebook de segunda
mão, cuja única função é guardar as fotos que faz das filhas. Camila
agora espera o resultado de um processo aberto pela Defensoria Pública
do Rio para conseguir o registro civil. E abrir caminho para o das
filhas.
Camille e a irmã são fotografadas quase todos os dias em casa.
— Aqui é ela fazendo pose, ela adora ser fotografada. Ela vai poder
mostrar para os filhos — exibe Camila, enquanto passa as fotos no
celular. — Aqui é a Sofia, internada com bronquiolite — completa.
O registro fotográfico, para a psicóloga Maria Tereza Maldonado,
ajuda na construção de uma identidade. É uma maneira de revisitar um
museu pessoal.
— É uma prova concreta da existência. Muito da nossa memória vai para
o arquivo do inconsciente, que pode ser revisitado nas fotografias.
Isso tem um forte significado na construção da identidade.
O acesso a esse registro fotográfico alcança pessoas que não tinham
essa possibilidade. Abre-se assim um leque fantástico no campo
emocional. Os momentos mais triviais são fotografados — analisa.
A aposentada Maria Eunice Franco da Conceição, de 53 anos, hoje
registra detalhes prosaicos de sua vida com a euforia da criança que não
teve chance de deixar uma única imagem sua para o futuro. Criada em
Feira de Santana, cidade agreste a 107 quilômetros de Salvador, na
Bahia, Eunice lembra poeticamente de uma infância sem glamour ou
brinquedos. Tem uma memória fotográfica dos dissabores vividos naquele
chão de terra batida, dos sonhos que tinha sobre um colchão de capim. A
primeira foto de si mesma foi a da carteira de trabalho. Depois veio a
que aparece grávida da filha, Taís Angélica, hoje com 23 anos. Maria
Eunice já tinha 30. No ano passado, ela tornou-se uma das alunas do
curso de Fotografia Social organizado pela UniSuam e pela Prefeitura do
Rio no Complexo do Alemão, onde mora.
— Eu não me lembro de qualquer fotografia. Mas me lembro da imagem de
um lugar vago, muita terra seca, vermelha, o sol tremia, eu de pezinhos
no chão, magrinha, com uma lata d’água na cabeça — conta Maria Eunice,
que, com os cinco irmãos, foi abandonada pela mãe dos oito aos 12 anos.
Do pai, não ficou imagem concreta alguma. Apenas uma vaga recordação:
— Ele era mau, coloquei isso na minha mente, aí eu não me lembro
dele. Sei que era alto, sarará. Me recordo do vestido que usei no
enterro dele, branco com bolinhas pretas. E esse vestido acabou se
tornando o de todas as festas. Era o único que eu tinha.
A mãe, Aldair Franco da Conceição, de 73 anos, que tinha se mudado
para o Rio, voltou a criar os filhos depois da morte do ex-marido,
quando Maria Eunice tinha 12 anos. Dona Aldair é o foco predileto das
fotos da filha. Elas organizam uma intensa agenda de passeios, tudo
documentado em fotos. A tecnologia ainda assusta. Dona Aldair só vê as
imagens em papel. Eunice também prefere o acervo à moda antiga.
Fonte:
http://oglobo.globo.com/tecnologia