domingo, 7 de fevereiro de 2010

Apresentando Argonautas Urbanos

Apresentando: Craft Consumer

por Gabi Leal

Você já ouviu falar no termo craft consumer? (no Brasil, este termo foi traduzido para “consumidor artesão”, no entanto, acho que quando traduzido perde um pouco do significado que a palavra craft carrega – quem faz artesanato sabe bem disso, não é mesmo? – por isso, utilizarei o termo em inglês)

Este termo foi desenvolvido por Colin Campbell para contrapor a idéia de um consumidor tolo e passivo e faz todo o sentido quando tomamos casos empíricos como os provocados pelo “Fiesta Movement”.

Justamente por causa desta inspiração resolvi escrever este post, mostrando as principais idéias por trás do termo craft consumer. O texto-base utilizado no post foi “The Craft Consumer: Culture, craft and consumption in a postmodern society”

(traduzido no Brasil como: O consumidor artesão: Cultura, artesania e consumo em uma sociedade pós-moderna), de Colin Campbell.


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A frase de Mary Douglas é um bom começo para a explicação de tal termo:

“Os bens são neutros, seus usos são sociais” (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009, p.36).


E é justamente esta idéia que Daniel Miller desenvolve em “Material Culture and Mass Consumption”, a qual foi inspiração para o desenvolvimento do termo craft consumer.

Para Daniel Miller o consumo é um processo onde um material genérico (um produto de consumo de massa) é incorporado em um arranjo de significados particulares. Miller tem como foco o consumo como prática cultural e está interessado em como um bem material pode ser transmutado e ressignificado em diferentes contextos.


O principal insight fornecido por Miller: “grande parte do consumo empreendido por indivíduos nas sociedades contemporâneas deveria ser concebido (...) como uma atividade em que os indivíduos (...) [não somente se apropriam de coisas], mas também trazem habilidade, conhecimento, discernimento, amor e paixão à ação de consumir” (CAMPBELL, 2004, p. 49)


Tendo isto em mente....


A idéia de craft consumer não se refere somente a esta faceta da reapropriação simbólica dos bens materiais, contidas no ato de consumir, mas se direciona a um grupo de consumidores específicos, o qual estabelece uma relação muito particular com o objeto adquirido. Poderíamos, inclusive, localizar os agentes do “Fiesta Movement” neste grupo sob o qual recai o olhar (e o pensamento) de Colin Campbell.


Essas atividades de apropriação por parte do consumidor podem ser chamadas de “ritual de posse”, “isto é, atividades que desempenham a importante função de habilitar os consumidores para adquirir o “título de propriedade” dos bens em questão. (...) Estes rituais ajudam no processo de superar a natureza inerentemente alheia dos produtos fabricados em massa e de assimilá-los no mundo de sentido que pertence ao consumidor.

Esta função é então reforçada pelo que se tem chamado de “rituais de tratamento”, que abrangeriam atividades como lavar e limpar o carro, polir móveis e, naturalmente, lavar e passar as roupas. Todas estas atividades cumprem a mesma e importante função de ajudar os consumidores a apropriar mercadorias padronizadas ou produzidas em massa a seu próprio mundo de sentido individual.

No entanto, não se pode dizer que todas as atividades em que os indivíduos tomam parte após a aquisição de um bem se enquadram na categoria das que revelam o consumo artesanal”. (CAMPBELL, 2004, p. 52)

Então, afinal, quem é craft consumer?

A customização e personalização fazem parte do “ritual de posse” que citei acima, contudo, devem ser diferenciadas do Craft Consumer:

1. Customização: “Um meio convencional pelo qual se poderia dizer que consumidores conquistam o “efeito de apropriação” é o processo de “customizar” produtos padronizados. Aqui, produtos fabricados em massa são “marcados”, seja pelo varejista ou pelo consumidor, de modo a indicar que são propriedade particular de um indivíduo específico” (CAMPBELL, 2004, p. 52).

Ex.: colocar o nome ou as iniciais do consumidor no relógio, caneta, placa do carro personalizada.


2. Personalização: é o ajustamento dos produtos às necessidades dos consumidores e para Campbell este conceito se aproxima mais da idéia de craft consumer. Contudo, “trata-se de um tipo de serviço oferecido com uma freqüência cada vez maior pelos próprios varejistas, de modo que é importante estabelecer a distinção entre tal atividade quando empreendida pelo varejista e o que, por contraste, poderia ser qualificado como uma legítima alteração do próprio usuário.

No entanto, aqui também ainda não é o caso de os consumidores tomarem parte em atividades que resultam em uma modificação significativa na concepção original do produto, embora possam ter de exercitar alguma parcela de habilidade” (CAMPBELL, 2004, p. 53).

Outra forma de personalização refere-se à maneira como os produtos são utilizados, a qual muitas vezes se difere da maneira planejada pelo fabricante. Estes casos são úteis para demonstrar que anunciantes e varejistas não são as únicas fontes de influência em relação a escolha e aos usos dos bens materiais. “O que é especificamente interessante nestes exemplos é poderem ser vistos como ações que visam a recuperar a “singularidade” ou a “unicidade” que eram tradicionalmente a marca de autenticidade do objeto produzido manualmente [handicrafted]” (CAMPBELL, 2004, p. 56).


3. Craft Consumer: é aquele consumidor que modifica a concepção do próprio produto, trata-se de algo que transcende a “demarcação de território” ou a contratação de profissionais que produzam algo especialmente para você, o consumidor, assim como o produtor-artesão, deve estar inteiramente envolvido na concepção e na produção deste novo objeto.

“O que é crucial notar acerca de grande parte desse “consumo artesanal” é que normalmente ele não envolve a “criação” física de um produto. (...) Antes, o que é realmente “criado” é um “conjunto”, ou uma “reunião” de produtos, cada um dos quais pode ser em si mesmo um item padronizado ou produzido em massa.

Ainda, é esse tipo de “criatividade para juntar” que é tão típico do consumidor artesanal moderno, patente, por exemplo, no modo como indivíduos escolhem combinar as roupas que formam um “conjunto”, ou na maneira como eles dispõem móveis e itens decorativos para criar um determinado “estilo” em um cômodo, ou mesmo em suas casas como um todo” (CAMPBELL, 2004, p. 57).


Os craft consumers são dotados de um “capital cultural”, para lembrar Bourdieu, ou seja, são dotados de certas habilidades manuais, criatividades e conhecimentos que podem ser de natureza tanto elitista quanto popular. Para Campbell, a atividade artesanal desses consumidores está localizada na intersecção de “um corpo de conhecimentos práticos adquiridos pessoalmente” com a “moda e a arte” (CAMPBELL, 2004, p. 60).


Para entender melhor esta idéia, podemos retomar os agentes do “Fiesta Movement”: observamos, através das tarefas a serem cumpridas, a incorporação do carro, junto a outros bens materiais de massa, para dar origem a outro conjunto de coisas, um conjunto muito particular, capaz de representar características individuais, próprias de cada participante.

Esta capacidade criativa e habilidade para dar origem a novos “produtos” faz parte do capital cultural do qual cada participante é dotado, o que torna viável esta capacidade de transformação, incorporação e criação a partir de diferentes produtos característicos do consumo de massa.


Referências bibliográficas:


CAMPBELL, Colin. “O consumidor artesão: Cultura, artesania e consumo em uma sociedade pós-moderna”. In GOMES, Laura Graziela & BARBOSA, Livia (org) (2004). Dossiê: Por uma antropologia do consumo. Antropolítica, Niterói, n. 17, 2º sem. 2004.

DOUGLAS, Mary & ISHERWOOD, Baron (1979). O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.


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