segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Regras para entrada no campo. Há de fato regras?

Quando comecei a estudar antropologia e, mais especificamente, métodos de pesquisa qualitativa, como etnografia e observação participante, muitos professores e colegas pesquisadores orientavam a nos comportar da forma mais simples e neutra possível. A intenção era passar despercebido.

Assim, indicações sobre roupas, o que usar e como usar eram comuns. Cada grupo estudado, que na ocasião era nosso objeto de pesquisa, tinha um comportamento e, para interagir com ele, era preciso preparação. Levar ou não bloco de anotações? Levar ou não câmera? Usar ou não o gravador? Eram perguntas que não davam pra serem respondidas antes do “estar lá” e sentir o clima.

Lembro-me do filme “Xingu”, lançado há pouco tempo que narra parte da história dos irmãos Villas-Boas. Eles não eram antropólogos, mas estavam ali realizando um trabalho de campo, agiam como se fossem; eram indigenistas e realizavam pesquisas etnográficas, aprendiam a língua nativa, o entendimento da cabeça dos índios das mais variadas etnias. Como primeira aproximação, penduravam em varais, espalhados pela floresta, espelhos, facas e serrotes para que os índios pudessem pegar (como um presente) e em troca eles se aproximariam dos brancos; funcionou.

A experiência atual
Quando comecei a entrar e realizar pesquisas em favelas muitos me orientavam a usar roupas básicas, como jeans e camiseta, escolher a cor certa por causa das cores das facções, além de tantas outras regras, nada de celular, nada de câmera, nada de gravador, nada de papel. Pois bem... chego a conclusão, hoje, de que de fato nada disso tem sentido. Só quem está lá é que sabe como proceder, o que usar e até onde poderá chegar.

Na atual favela que realizo minha pesquisa não obedeci a nenhuma dessas tais regras, ou orientações. Não há disfarce. Fui sentindo o clima e a intuição foi me levando, comecei a tirar fotos pelo celular, logo usei uma câmera pequena, que agradou a muito os moradores, que vinham me perguntar se eu estava fazendo as fotos para alguma reportagem (me acharam com cara de jornalista!). Expliquei a situação: estava morando lá para fazer um trabalho para a faculdade sobre o que é morar e viver numa favela; a parte boa e a parte ruim e esperava que eles me contassem e mostrassem como era.

Pronto, sucesso total! Convites choveram. Aumentei o tamanho da câmera, levando para o campo a minha câmera profissional (imponente). O que antes havia pensado que seria complicado e perigoso passou a ser um ponto a meu favor, pedem para sair nas fotos, pedem para terem suas casas fotografadas. Sentimento de invasão? Nenhum pouco. Ainda estou pensando na razão para essa abertura toda, talvez o fato de ser mulher contribua para uma maior aceitação. O desenvolvimento do meu trabalho e a minha interação vem de forma natural. Ou até mesmo a transparência em dizer que a intenção é quebrar preconceitos e contar a verdade deles. A única coisa que tomo cuidado é deixar uma cópia das fotos na associação de moradores, por uma questão ética, todos são avisados e podem copiar, imprimir e enviar a foto como bem quiser.

Certa vez, indo encontrar uma moradora em sua casa para uma entrevista a vejo saindo pelo portão. Ela prontamente me diz que estava indo fazer algo urgente e não poderia me receber. Pergunto meio sem graça o que era e ela me disse que sua unha de acrigel havia quebrado. Ela estava indo naquele momento a uma manicure (na favela mesmo) reparar o dano. Adorei o sentido de “urgência” dela (o que eu não duvido, pois sou mulher e entendo perfeitamente) e com toda cara de pau do mundo pedi para ir junto. Ela topou. Saímos pela favela, entramos em uns becos, em uns corredores e chegamos à casa da manicure que trabalha em um salão chique da Zona Sul, sendo que nas segundas-feiras (seu dia de folga) atende em casa para tirar um ganho a mais.

Papo vai, papo vem e eu lá reparando na casa da manicure; TV de LDC, geladeira frost free, home theather... (olhar antropológico em ação), até que a mesma diz para minha entrevistada: “Ahhhh, nem... aqui não tem nenhum esmalte que seja a sua cara, só tem esses assim, ó, apagadinhos”. Mais que depressa pergunto para a manicure: “E como seria um esmalte com a cara dela?” Achei curioso termos a cara de um esmalte. Ela me respondeu: “Ah... um assim cheguei! Um bem divertido, pra cima, alegre como ela!”

Lembrei de um esmalte Revlon que havia comprado e não tinha coragem de usar por causa da cor laranja fluorescente. É nessa hora então que percebo a minha brecha. Disse para ela não pintar as unhas de cor nenhuma naquele momento, pois no dia seguinte eu lhe daria um esmalte importado que era, sim, a cara dela.

Bem, nem é preciso dizer que funcionou. E muito! A minha mais nova amiga agora tem unhas laranja que são, de fato, a cara dela. Alegre, vibrante e chamativa. E uma relação se iniciou ali. Ao invés de ser básica, ao invés de ser invisível ou neutra, ao invés de ser natural, tenho experimentado o oposto e tem dado resultado, pois quanto mais os outros sabem que sou de fora, quanto mais eles sabem que estou pesquisando, mais eles me deixam entrar em suas vidas. Ao invés de levar espelhos, serrotes ou facões, tenho levado esmaltes. Fico me perguntando se as índias não iriam gostar também... esmaltes vermelhos, azuis, laranjas.
Regras para entrada no campo. Há de fato regras?