sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Vende-se uma falsa etnografia

Semana passada participei de um evento no Rio de Janeiro organizado pela ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) sobre Pesquisa e Inteligência de Mercado. Era o primeiro evento que participava desta instituição e confesso que estava um pouco ansiosa.

Tenho eventualmente feito algumas consultorias para empresas e tenho alguma experiência em pesquisas de mercado, mas nunca antes tinha feito qualquer contato com eventos desta ordem por pura falta de oportunidade.

Muitas palestras interessantes algumas meio arrastadas como qualquer outro congresso, mas uma em especial me chamou atenção pela pretensão e inventismo revelado.

Era um instituto de São Paulo que utiliza a tecnologia para fazer suas pesquisas, questionários, traillers com Internet são dispostos em locais movimentados para que os participantes tenham acesso a rede e possam responder seus questionários on line, até ai... ok.

Até que a palestrante nos mostra uma técnica chamada de "etnografia digital pontual" (acho que era esse o nome), seria uma inovação segundo a empresa, onde ao invés do pesquisador antropólogo participar do cotidiano e fazer seus relatos, poderações e análises, os próprios nativos (no caso, os consumidores) através de câmeras e celulares gravam o momento ou a situação que deverá ser estudada.

Ou seja, a palestrante justifica que primeiro, os nativos estariam muito mais a vontade do que se tivesse uma pessoa estranha acompanhando, segundo, ele teria a liberdade de mostrar o que quer, terceiro haveria mobilidade e rapidez pois os videos podem ser feitos em qualquer área do Brasil e poderia ser enviado pela Internet, e para finalizar o custo seria muito mais baixo, revela.

Ela mostra alguns trechos de vídeos gravados de uma pesquisa sobre alimentação no café da manhã. As mesas postas revelam cafés da manhã em algumas casas super equilibrados, e mais, os moradores com tempo de simplesmente sentar a mesa pra comer, o que começo a duvidar diante da vida corrida no cotidiano da maior parte das famílias brasileiras.

Uma pergunta surge na plateia, quanto custaria uma gravação destas? "Em média 2 mil reais por gravação", responde.

Entrei em choque.

Como assim, uma gravação sairia mais barato do que contratar um antropólogo? Eu duvido que empresas de mercado pagariam mais de 2 mil reais de diária a um profissional qualificado para fazer uma etnografia de um único dia.

Logo depois a palestrante justifica dizendo que depois os vídeos são mostrados a especialistas das áreas de antropologia, psicologia, sociologia entre outros para analisar as situações, e várias ligações são feitas antes e depois da gravação para que os participantes (consumidores) se sintam à vontade com a pesquisa e filmagem.

São vários pontos a se discutir que prefiro elaborar um post separado, mas uma coisa é certa: isto não é uma etnografia, é uma representação de um momento escolhido pelo pesquisado, completamente enviezado, e falso.

Primeiramente qualquer um de nós cuidaria intensamente da imagem que será apreendida, senão, por que mexemos no cabelo ou encolhemos a barriga na hora de sermos fotografados ou filmados? Outra coisa, por mais que o pesquisado queira investir em naturalidade ele não tem preparo, noção ou técnica para observar elementos que são contemplados em uma boa etnografica. Para dar um exemplo podemos citar os cheiros, a linguagem, a estrutura da casa (que não está presente no vídeo).

Um vídeo é o enquadramento de um cenário, onde atores vivem papeis em dadas encenações... ou seja, tudo é falso, tudo é fake, tudo é elaborado. Com a tecnologia digital essa encenação é ainda maior, uma vez que o botão de DELETAR nos permite apagar, refazer, tentar simplesmente captar o nosso melhor, aquilo que queremos que os outros vejam e aprovem.

O que deveria ser deletado era essa metodologia, que vende resultados impossíveis de serem alcançados.

Pra mim, ainda é algo muito mais sério é um exemplo de pura falsidade ideológica.

Revela também o desespero de empresas que investem em inovações para obter dados, fica claro que nem sempre uma inovação é algo positivo, deve-se antes de mais nada consultar pessoas experientes antes de entrar em roubadas deste tipo.