domingo, 19 de janeiro de 2014

Sobre os rolezinhos - movimento, juventude e consumo

Artigo: Uma demonstração dos jovens pelo direito à cidade 

Para professora de antropologia da Oxford, rolezinhos devem ser entendidos como uma demonstração do direito de criar e recriar os nossos espaços e a nossa cidadania

Rosana Pinheiro-Machado
Uma das questões mais discutidas nos últimos dias sobre os rolezinhos é se esse ato é político ou não. De alguma maneira, tenho percebido que existe uma pressão social muito grande para mostrar que não há reivindicação social e que tampouco se configura um movimento social. O argumento de que esses jovens apenas querem zoar tem sido amplamente usado e, por meio desse discurso, tem-se uma forma de deslegitimar ou menosprezar toda a riqueza de significados desse ato.
Não se trata de um movimento social no sentido de uma ação coletiva clássica. Mas o conceito de política precisa ser minimamente contextualizado e alargado. A acepção política aristotélica versa sobre a participação engajada na vida pública da polis. Pertencer a polis é exercer a cidadania. Os rolezinhos, portanto, devem ser entendidos como uma demonstração do direito à cidade: a liberdade de ir e vir, de criar e recriar os nossos espaços e a nossa cidadania. Ao fazermos isso, modificamos a nossa realidade como diz o geógrafo britânico David Harvey. Esses jovens, do Brasil todo, vivem em um contexto de violência estrutural: burocracia, hospital e escolas que não funcionam. Somado a isso, há um contexto brutal de discriminação. Eu me arrumo bem para poder ser aceito no shopping e não ser confundido com bandido, preto e favelado. As pessoas tem que entender que na favela também tem gente que gosta de coisa bonita, disse um menino do Morro da Cruz em Porto Alegre, de 17 anos, a mim e a pesquisadora Lúcia Scalco.
A premissa básica do rolezinho é ir a um espaço considerado público e gratuito, mas que, para aqueles jovens, tem uma coisa que na favela não tem: riqueza, segurança, luzes, mercadorias. Os shoppings são bonitos também, não vamos esquecer-nos desse detalhe. Os shoppings têm produtos bons de verdade, como disse-me uma antiga informante, que era vendedora camelô e trabalhava com pirataria. Os shoppings, principalmente, têm marcas caras, e são essas marcas mais caras que despertam fascínio de um mundo encantado criado pelo branding do amor das grandes empresas. O problema do branding do amor é que, como nas relações privadas interpessoais, não podemos escolher quem vai nos amar. Podemos tentar alvos, mas não controlamos isso de forma alguma. E esses jovens amam a quem não os amam.
É bastante fácil acusar esses jovens de consumistas e dizer que não há política em querer usar marcas do capitalismo global. É preciso entender que a política está justamente nesse ato da apropriação do simbolo que é mais caro ao capitalismo. Trata-se de um engajamento em um mundo que não foi planejado para eles. Qualquer plano de marketing de uma grife irá excluir todas as possibilidades de a marca ser associada com pessoas non grata. E os meninos não aceitam isso, vão lá e confundem tudo. Fazem uma bagunça tremenda na sociedade ao romper a bolha da exclusão urbana, espacial e da sociedade de consumo. E a população se incomoda profundamente, sente medo, repulsa e aversão.
Mas é importante não fetichizar essa idolatria das marcas com um recorte de classe. Não podemos nos esquecer que esses jovens têm 16 anos. E, aos 16 anos, em uma escola de elites, todos os jovens estarão usando o mesmo moleton de marca norte-americana. A diferença é que para uns, isso é dado; para outros, exige um processo sofrido para a aquisição e, consequentemente, de ritualização para a exibição. A política do rolezinho é, simplesmente, ter o direito de caminhar, namorar, usar e exibir como qualquer cidadão brasileiro deveria ter direito.

Fonte: http://moglobo.globo.com/integra.asp?txtUrl=%2Fpais%2Fartigo-uma-demonstracao-dos-jovens-pelo-direito-cidade-11343827