segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Quando os índios somos nós e os rolezinhos

 
Quando os indios somos nós* e os rolezinhos
Laura Graziela Gomes (PPGA/UFF)

Imagine você fazendo parte de um grupo de brasileiros de classe média em uma excursão a New York, indo passear numa loja de departamento linda e cara (não estou me referindo aquelas mais "populares"). O objetivo é apenas conhecer este famoso templo do consumo nova-iorquino, um lugar frequentado por pessoas ricas, celebridades, enfim gente muito fina, dar uma voltinha, tirar fotos para postar no facebook, instagram e, se possível dar de cara com alguma promoção, quem sabe, uma meia, gravata, lenço, qualquer coisa que possa comprar e ganhar como troféu aquela embalagem maravilhosa com a qual provará aos amigos quando retornar de viagem, que lá esteve e, portanto, pode ser considerada uma pessoa "civilizada". 
Agora, imagine você e seu grupo tendo a entrada barrada por algum motivo que sequer lhes será comunicado. Passaria por sua cabeça e a dos demais aceitarem o que aconteceu como uma fatalidade e saírem docilmente com o rabinho entre as pernas? Nada disso, não é mesmo? Imediatamente, o episódio seria estampado nos jornais brasileiros, nas redes de televisão, redes sociais com acusações de racismo, preconceito etc. 
Nós outros ficaríamos indignados em solidariedade a vocês, nossos compatriotas, exigindo providências das autoridades diplomáticas brasileiras, invocando liberdades civis, direitos de ir e vir, reciprocidade, e ahhhhh como ia me esquecer disso? invocaríamos sem piedade os famigerados direitos humanos! No meio da confusão, passaria pela sua cabeça ou de alguém mais do grupo, que os administradores da loja de departamento pudessem estar operando com a mesma lógica dos administradores e seguranças de nossos shopping centers em relação aos jovens do rolezinho? Ora, você dirá, mas isso é um absurdo, ou melhor uma provocação! Imagine, eu ser comparada/o com um marginal da periferia! Essa mulher é uma louca! Engano seu meu querido ou minha linda. Seu cabelo não nega, sua bunda idem e o tom da sua voz também, bem como outros sinais de seu corpo e aparência que poderão trair suas origens "latinas" e sociais, por mais maquiagem, tintura nos cabelos, corte, escova, perfume e roupas de marca que usar. 
Aliás, poucos brasileiros mesmo de classe média passariam numa inspeção eugênica rigorosa, feita a partir de critérios wasp (white american saxon people), diga-se de passagem. Dito isso, afinal, sob quais alegações teríamos o direito de invadir uma das lojas de departamento mais exclusivas de New York para desgosto de seus vic (very important clients)? 
A pensar pelas mesmas categorias de alguns jornalistas, nós seríamos percebidos a partir de atributos muito semelhantes àqueles que foram usados contra os jovens do rolezinho: somos mestiços, e ainda vistos como habitantes da periferia do mundo, pobres, atrasados, apesar de eventualmente termos algum dinheiro para gastar com bobagens. Em suma, uns "bárbaros".

Você não precisa ser um antropólogo, mas vez por outra pode se colocar no lugar do outro, ou então, imaginar uma situação em que você é o outro, sacou?
(*) O título foi dado como referência e homenagem ao livro de Roberto Kant de Lima, antropólogo brasileiro, escrito a partir de sua experiência em Harvard como estudante de doutorado "brasileiro". Ao ler as matérias sobre os rolezinhos, o livro me veio a mente por inteiro. Deveria ser lido obrigatoriamente em todas as faculdades de jornalismo do país.
Sobre a autora profa dra Laura Graziela Gomes,  professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, coordenadora do Núcleo de Estudos da Modernidade NEMO. Pesquisadora do campo da Antropologia do Consumo, autora de livros e artigos acadêmicos na área.