terça-feira, 21 de agosto de 2012

Estrogonofe, brigadeiro e segurança na favela

Esse último sábado fiquei simplesmente espantada com a quantidade de festas de aniversário que estavam acontecendo simultaneamente na favela. Para uma delas fui convidada com toda pompa e circunstância... aniversário de criança com tudo que tem se tem direito, cachorro quente, pipoca, brigadeiro e, claro, como não poderia faltar, um pratinho de comida que estava pra lá de bem servido. Dia de festa é dia de estrogonofe! Prato que é a verdadeira tradução de dias especiais.
A festa foi muito animada, eu adorei participar. Logo no começo fui eleita fotógrafa oficial do evento, título a mim ofertado devido a posse de uma câmera profissional grande e vistosa. Poses, pedidos de registro e alegria congelada num clique. Essa estratégia me faz conhecer gente, chegar perto, trocar ideias e olhares, tudo isso sem parecer invasiva demais e em prol ao registro do evento.
Chamavam-me de gringa e assim me apresentavam. Minha cor de pele branca me denunciava. Uns brincavam com outros dizendo que eu não falava português o que aguçava ainda mais a curiosidade e abria oportunidades para novos convites.
“Ela tá fazendo um estudo sobre favela? Então ela precisa conhecer minha casa”.
Tanto pelas diferenças afirmadas nas falas, uns diziam que suas casas nem pareciam ser da favela devido à beleza e ao conforto. Era nítida a necessidade e o desejo de quebrar paradigmas e de fato revelar que ninguém ali é insano de morar em um lugar ruim, violento e insipiente como mostra a mídia. Por outro lado, principalmente os mais idosos me viam como grande possibilidade de desabafo, por quererem ser ouvidos, desfiavam-me rosários lotados de lamentações e comparações de um tempo que não volta mais. Um tempo que a favela era apenas uma invasão com cara de cidade do interior, não tinha a atual conjuntura instaurada (super população, violência, infraestrutura precarizada). Em nenhum momento o tráfico é citado, mas está presente em suas falas de forma subtendida. “antes dos meninos era outra coisa”. Meninos é a forma branda e eufemística de tratar de um grande problema para muitos moradores.
Quando perguntados sobre as UPPs, se de fato gostariam de uma unidade ali na área, percebi uma total desaprovação. Segundo os moradores a situação daqueles que moram em regiões pacificadas está muito pior que a deles. Há troca de muitas informações como uma rede de conhecimento de fato. Abuso de poder, humilhação, proibições descabidas são a tônica das áreas pacificadas, situações que não são mostradas pela TV traduzem o conceito real dessa politica de segurança pública.
Durante a festa sentei perto de duas moradoras da Mangueira. Duas negras belíssimas, com suas roupas tigradas, unhas decoradas e cabelos de aplique. Eram de parar o trânsito, como dizem. As aspirantes a passistas (título dado por mim durante a nossa conversa, realmente fiquei muito embasbacada com tamanha beleza genuinamente carioca) são mães de filhos adolescentes que nasceram e foram criados na localidade e contaram que vivem diariamente perturbações após a pacificação. “Nós vivemos um terror, um aborrecimento que a TV não mostra, isso tudo que falam das UPPs é conversa! O que vivemos no dia a dia é um horror e não temos a quem recorrer, somos reféns de policiais despreparados que andam armados, que abusam do poder com a gente, somos revistados todos os dias como se fôssemos bandidos.”
De fato, as duas moças tinham um discurso muito convincente, elaboravam explicações plausíveis sobre o que viam e participavam. E continuavam a falar. “Antes, quando tinha os meninos do movimento, a gente não mexia com eles, e eles não mexiam com a gente, havia um respeito. Eu mesma nunca sequer falei com eles, não havia roubo na favela, quando havia qualquer confusão eles resolviam, ou a confusão acabava antes mesmo de chegar aos ouvidos deles pra não dar problema, o povo se controlava. Mas agora é diferente, estamos sendo roubados! Antes os bandidos que moravam na favela sabiam que não podia roubar, porque senão o tráfico dava um corretivo neles, agora é diferente, esse pessoal sabe o que temos dentro de casa, entram e fazem a festa, nos roubam direto, TVs, dinheiro, DVDs, relógios e até micro-ondas. Sabem que vai ficar por isso mesmo, pois a polícia não irá resolver nada. Tudo é muito mais burocrático, os ladrões aproveitam essa burocracia toda pra agir. Pra quem iremos reclamar? Para os policiais que acham que nós somos bandidos e nos revistam todos dias?”
Elas discorreram sobre vários incidentes envolvendo policias, todos eles foram matéria de reportagens em jornais e revistas de grande circulação. Ficaram perguntando sobre os casos, “você se lembra do caso” e repetiam o ocorrido para logo depois contar o que “realmente aconteceu”. Enfim, eram interlocutoras conscientes e informadas. Uma situação me chamou atenção.
Contaram que num dado momento (não muito distante) uma das policiais, parece que em cargo de comando inclusive (citaram o nome e o cargo, mas, por questões éticas, não me atrevo a repetir), arrumou uma discussão com uma das moradoras e as duas saíram no braço. Houve um desafio por parte da moradora que disse que se ela era mulher tirava o colete a prova de balas e resolvia tudo como mulher de verdade. Assim a policial agiu. Tirou o colete e se atracaram uma com a outra.
Parece que a policial levou a pior, apanhou muito e saiu machucada da briga. Foi assim que as minhas novas amigas me contaram a história. Como é que uma policia dessas irá mudar a imagem que a corporação tem? “Essa história e outras coisas que acontecem não aparecem nos jornais nem na televisão” - repetiu.
Segundo elas, o povo está de “saco-cheio” dos policiais que invadiram o espaço, recebem dinheiro de muitos traficantes que continuam vendendo drogas na localidade e abusam da autoridade proibindo festas e bailes e resolvem tudo com armas de choque. Qualquer discussão, ou enfrentamento, os policiais se utilizam dos choques e sprays de pimenta para resolver a questão.
As falas empolgadas e verdadeiras das duas me mostrou que, de fato, é necessário relativizar tudo que nos é mostrado. As marcas, empresas e companhias estão enlouquecidas, visionando as classes C e D, e procuram entrar nesse mercado que é a favela, influenciados por essa falsa sensação de segurança promovida pelas UPPs. Ai vêm às questões: 1) será que há uma agregação de valor unir a sua marca (ou empresa, ou projeto) a uma política de segurança pública que pode ser um fiasco proferido pelos próprios moradores; 2) o que eles, esses moradores e consumidores pensam a respeito? Será que alguém perguntou? Será que algum pesquisador conviveu em áreas pacificadas para vivenciar tais questões?
Diante do que ouvi sinto (e pressinto) que talvez a gente esteja (e as empresas também) comprando ideias que nem sempre tem relação com a verdade. Vendem-nos cenários que compõem peças teatrais, onde personagens são criados, tipos ideais de bandidos e mocinhos, salvadores e carrascos, inimigos e heróis que talvez não tenham relação alguma com o que de fato ocorre.
A festa de aniversário continuou com crianças correndo pra lá e pra cá; hora de cantar “Parabéns” e minha presença (e da câmera) é exigida perto da mesa do bolo. Preciso registrar o assoprar das velinhas. Bolo cortado, brigadeiros servidos e distribuição de lembrancinhas se dão revelando enfim que era hora de partir.
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Texto originalmente publicado no site Mundo do Marketing: http://mundodomarketing.com.br/blogs/diario-das-classes-c-d-e-e