quinta-feira, 21 de junho de 2012

O último beijo.

"Muitas vezes o paraíso e o inferno são o mesmo lugar.
Maridos que já acompanharam suas esposas em lojas de cosméticos sabem do que estou falando. Enquanto para elas é um paraíso experimentar todas as paletas de cores possíveis de batons Mac ou Shu Uemura, para eles é o inferno com ar condicionado.
Isso até o momento em que eles descobrem o preço de cada batom desses.
Nessa hora, se dão conta que o inferno tem sim subsolo e que tem um lugar reservado para eles perto do banheiro. Onde, por acaso, o ar condicionado quebrou.
Aí entramos na eterna discussão do que é supérfluo e do que é essencial.
Um conflito que nasce da percepção que cada um tem do mundo e do valor intrínseco das coisas. O delicado terreno do intangível.
O que é supérfluo para você pode ser essencial para mim.
Ou como já disse Oscar Wilde: dê-me o supérfluo que eu abro mão do essencial.
Quantas vezes já não vimos maridos criticando suas esposas por gostarem de novela? Não entendem porque elas acompanham fervorosamente, rindo, chorando, torcendo pela mocinha a cada capítulo.
E esses mesmos maridos não gritam, choram e acompanham fervorosamente as partidas de futebol de seus times pela TV?
Não é no fundo a mesma coisa?
O futebol não é a novela dos homens?
E a novela é não é o futebol das mulheres?
Entendam aqui que estou sendo propositalmente maniqueísta no exemplo acima, só a título de ilustração.
Mas… e o batom?
Assim como todos os outros aparatos da indústria cosmética e da moda, não são objetos de culto ao supérfluo, ao superficial, a frivolidade, a aparência?
Vou deixar a resposta a essa pergunta, ironicamente, para um militar: o Tenente-Coronel Mervin Willett Gonin.
Um herói da 2ª Guerra Mundial, que estava entre os primeiros soldados britânicos que em abril de 1945 libertaram os prisioneiros de Bergen-Belsen, um dos mais cruéis campos de extermínio nazista.
Reproduzo alguns trechos de seu diário, tentando ser o mais fiel possível ao contexto de seu relato.
“Não consigo dar nenhuma descrição adequada do campo de horror no qual os meus homens e eu tínhamos de passar o próximo mês das nossas vidas.
Corpos jaziam por todo o lado, alguns em montes enormes, algumas vezes jaziam sozinhos ou em pares onde tinham caído. Demorou algum tempo para se habituar a ver homens, mulheres e crianças a desfalecer enquanto passavam por eles e resistir ao impulso de ir ao seu auxílio.
Cada pessoa tinha de se habituar à ideia que um indivíduo não contava. Todos sabíamos que estavam morrendo quinhentas pessoas por dia e que outras quinhentas pessoas por dia iam morrer durante semanas até que algo que nós tivéssemos feito começasse a surtir o mínimo efeito.
Era, muito difícil ver uma criança asfixiando com difteria quando sabíamos que uma traqueotomia e alguns cuidados básicos estavam a caminho para salvar. Homens comendo vermes enquanto agarravam um pedaço de pão unicamente porque eles tinham de comer vermes para sobreviver e naquele momento pouca diferença sentiam. Uma mulher completamente nua lavava-se com sabão e com a água de um tanque onde os restos mortais de uma criança flutuavam.
Foi pouco tempo depois da vinda da Cruz Vermelha Britânica , embora possa não haver ligação, que uma grande quantidade de batom chegou. Isto não era nada do que nós homens queríamos, estávamos clamando por centenas e milhares de outras coisas e não sabíamos quem tinha pedido batom.
Só queria descobrir quem foi que o fez, foi uma ação de gênio, brilhantismo puro e inalterado. Creio que nada fez mais por estas prisioneiras que o batom. Mulheres jaziam nas camas sem lençóis ou camisolas mas com lábios escarlates. Víamos algumas mulheres vagando com nada mais que uma manta nos ombros, mas com lábios vermelho escarlate.
Vi uma mulher morta na mesa de autópsia que ainda agarrava o batom com as mãos. Finalmente alguém fez algo para tornar pessoas indivíduos novamente, elas eram alguém, não mais somente o número de identificação tatuado no braço. Finalmente elas podiam ter algum interesse na sua aparência.
Aquele batom começou a devolver-lhes a sua humanidade.”

Fonte: http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/blog-do-management/2012/06/20/o-ultimo-beijo/