terça-feira, 10 de abril de 2012

Ainda sobre geladeiras e objetos de desejo



 Em post anterior eu contei sobre uma festa dada para comemoração de uma geladeira que uma vizinha havia ganhado. Essa semana ocorreu algo que faz ratificar todo o argumento desenvolvido naquela ocasião.

Meus pais, dois senhores de idade já avançada acabaram de contratar uma nova empregada doméstica. A moça, beira os 45 anos, já é avó, criou seus filhos que já casaram e saíram de casa. Ela morou sempre de aluguel e trabalhou em casa de família. Um dia, voltando para casa após uma semana de trabalho, viu que a mesma havia sido assaltada e levaram todos os seus pertences, roupas, móveis e inclusive os eletrodomésticos mais pesados, fogão, geladeira, para sua surpresa, nenhum vizinho viu nada.

Na época, os seus patrões ajudaram com o que podiam, deram roupas para vestir, um pequeno enxoval para necessidades básicas, e ela resolveu se mudar indo parar em um município mais para o interior do Estado buscando mais segurança e tranquilidade. Até que meses atrás conhecemos Solange. Pouco falava, pouco se expressava, pouco sorria.

Um belo dia, quase três meses depois de começar a trabalhar para meus pais contou que enfim iria comprar uma geladeira, pois não aguentava mais comprar alimentos que iriam ser consumidos em um dia, ou então não poder beber água gelada, ou simplesmente não ter gelo em casa. Minha mãe conta que foi a primeira vez que ela esboçou alguma felicidade, ou seja, só com a possibilidade de comprar uma geladeira. Achando aquilo tudo muito estranho, minha mãe tentou entender a história e só aí que Solange contou a sua história triste que acabo de relatar acima e, para sua surpresa, meus pais comovidos com tal situação, resolveram ajudá-la “tirando” para ela alguns eletrodomésticos nas Casas Bahia, loja escolhida por ela porque parcela em mais vezes. Meus pais não discutiram.

Solange queria uma frost free, com porta dupla, cheia de firulas e “papagaices”, modelo de última geração. Até que minha mãe interveio perguntando quanto ela pagava de energia elétrica, se ela morava com uma grande família, e conseguiu convencê-la a adquirir um modelo mais simples, pois morava sozinha, tinha poucos recursos para pagar energia elétrica (frost free consome mais energia) e uma geladeira menor seria perfeita para ela.

No dia combinado para ser o dia da compra da nova geladeira, Solange cantarolou o dia todo. Brincou durante o almoço e, no final do dia, se arrumou toda para ir ao shopping comprar o seu tão esperado objeto de desejo.

No dia da entrega, Solange não titubeou, não foi trabalhar, monitorou a rua e ligava hora sim hora não para minha mãe relatando a demora e a ansiedade, que comovida passou a dividir o sentimento e as duas permaneceram dessa maneira, compartilhando a angústia da espera até às 15h da tarde.

Neste horário o telefone toca nervoso, do outro lado uma frase:
- Dona Íris, chegou! Vou lá receber a minha geladeira! E bateu o telefone na cara da minha mãe, que apenas sorriu aliviada.

Passadas algumas horas, minha mãe curiosa liga pra ela:
- E aí? Como está de geladeira nova?

Ela responde lépida e fagueira:
- Ah Dona Irís, eu estou tão feliz, nem sei como dizer pra senhora, eu achei ela tão linda que a senhora sabe que eu até abracei a geladeira!?
- Eu acredito, disse minha mãe expressando normalidade. - Eu sei o que é querer muito uma coisa e depois conseguir.

Essa história totalmente verídica nos faz pensar como nós. Independente de classe, personificamos objetos e atribuímos valores que vão para além da questão prática. A geladeira tão esperada e que foi abraçada ao chegar deixou revelar o quão objetos são importantes para expressar nossos valores simbólicos.

E mais, que classes populares não fazem qualquer projeção de gastos após a possibilidade de realização destes desejos. Solange iria comprar a sua geladeira no carnê a juros altíssimos, compraria o último modelo de uma marca de primeira linha e com grande capacidade de armazenamento. Na verdade, depois de fazer as contas junto com ela, minha mãe conseguiu explicar que ela pagaria por quase três geladeiras de modelo intermediário, ou seja, ela estava comprando os juros e levaria de brinde para casa uma geladeira.

Difícil convencer muitos consumidores desses gastos que estão embutidos pós compra. Juros, manutenção, despesas com o aumento da conta de energia elétrica, pagamento de impostos... São carros andando pelas ruas sem pagamento de tributos, manutenção ou seguro. São celulares que fazem de tudo, tiram fotos, filmam, toca música, mas a primeira função que seria fazer ligações... nem sempre é possível pois o seu dono não tem recursos para colocar créditos e simplesmente não podem usá-lo para falar.

Eles estão errados? Não sei. Como antropóloga não posso nem devo fazer juízo de valor. No entanto, são informações e representações acerca dos objetos e suas posses que nos fazem entender como as pessoas são, vivem e lidam com as coisas. Quais são as suas prioridades na hierarquia de pagamento de contas, ou na compra de determinados itens, revelando seus gostos, escolhas e identidade.

E já fazendo uma provocação... Solange abraçou uma geladeira. Eu já vi muita gente dando nome a carros novos, beijando iPads e fazendo carinho em iPhones. Os objetos mudam, mas a nossa relação com eles é a mesma.

Fonte: http://mundodomarketing.com.br/blogs/diario-das-classes-c-d-e-e/23420/ainda-sobre-geladeiras-e-objetos-de-desejo.html