segunda-feira, 2 de maio de 2011

A cultura material e a construção de nossa subjetividade

por Robson Campaneruti

Observando a cultura de consumo, percebemos que a materialidade ganhou maior força na sociedade contemporânea. Entretanto, desde os primórdios da humanidade a cultura material esteve presente, fornecendo objetos que demarcam períodos e até certa “evolução tecnológica”. Já vimos que os objetos apresentam sua forma utilitária e também não podemos descartar a centralidade de seu valor simbólico. Os objetos adquirem história, representam eras e memórias, individuais ou coletivas.

Um exemplo paradigmático na Antropologia configurou-se quando Malinowski (1884-1942), ao retornar de sua expedição nas Ilhas Trobriand, foi indagado a respeito da verdadeira utilidade das trocas cerimoniais do kula. Essas trocas estabeleciam e configuravam a circulação de braceletes e colares entre os nativos daquelas ilhas. Malinowski foi ao Museu da Coroa britânica e lá pode perceber a relação entre bens “sem utilidade” prática, mas com grande valor histórico e simbólico, para os povos que veneram tais bens. Ou seja, sem esses objetos como poderíamos definir que os braceletes e colares que circulam no kula ou as jóias da Coroa são de determinado povo ou período histórico? Portanto os objetos “organizam (...) a percepção que temos de nós mesmos, individual e coletivamente” (CLIFFORD apud MEZABERBA, 2010, p.121)

A trajetória dos bens sinaliza a fluidez de sua própria condição: ao percorrer sua “biografia”, sua posse e usos podem torná-los mercadorias, objetos cerimoniais, souvenires, estimular a memória afetiva, presentes dados ou recebidos (lembramos da discussão do módulo 1!), doados, herdados, contemplados, entre outros. Mas é preciso também observar o quanto eles NOS modificam, nos caracterizam, enfim, nos identificam. Podemos nos imaginar, por exemplo, dirigindo três tipos de carros em três situações diferentes: um Fusca 1973 num bairro de elite, um Novo Uno pela cidade ou então uma Land Rover 4x4 zero km num bairro popular. Como nos sentiríamos? Ou mais, como as pessoas nos reconheceriam?
Observamos que os objetos nos identificam com algumas experiências e até nos identificam.
Nosso cotidiano está impregnado de objetos materiais, que nos relacionam e nos situam na vida social. Como vimos nas aulas anteriores, o consumo é ponto norteador para entendermos a cultura material. Entretanto, como nos aprofundarmos nesta questão que nos parece tão óbvia? Os objetos são peças fundamentais na construção de nossos sistemas culturais, mesmo não tendo consciência de sua origem ou de sua transformação no decorrer da História.

Segue abaixo um texto como exemplo de construção material da cultura, reforçando que não existem objetos culturais “primários” ou “genuínos”. A cultura material nos referencia, mesmo que seja de forma inconsciente, e por nós é manipulada de acordo com os nossos valores (morais e/ou culturais) e códigos sociais.


CIDADÃO 100 % NORTE-AMERICANO

“O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tomou doméstica na índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo: ou de seda; cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso de mocassins que foram inventados pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos e entra no banheiro, cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia, e lava-se com sabão, que foi inventado pelos antigos gauleses; faz a barba, que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do Antigo Egito.

Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira de tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no Antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra no pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.

De caminho para o breakfast pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é o inventado na Itália medieval, a colher vem de um original romano. Começa seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a ideia de aproveitar seu leite são originários do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na índia. Depois das frutas e do café, vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou uma planta doméstica na Ásia Menor. Rega-os com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de urna espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia oriental, salgada e defumada por um pro­cesso desenvolvido no norte da Europa. Acabando de comer nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta original do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarros provenientes do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for um bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser 100% americano.”



Fonte: LINTON, Ralph. O homem: Uma introdução à antropologia. 3ed., São Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. Citado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p.106-108]