sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Matéria do Saude.com



Uma verdadeira pesquisa sobre consumo





Hilaine fala com o saúde.com.br sobre a experiência a partir do Projeto de Imersão Social, as lições aprendidas e que resultados conseguiu, com essa grande aventura antropológica.

Saúde: Nos conte um pouco sobre a sua pesquisa. Quais os principais objetivos e por que realizar uma análise tão profunda sobre os habitos de consumo desse público específico?

Hilaine: A pesquisa foi concebida durante o processo seletivo para participar de um projeto da área comercial da empresa concessionária de energia elétrica. Durante a conversa, quando o diretor explicava o que esperava de mim, apontei que o ideal seria a realização de uma investigação mais profunda, conhecer o cliente de uma forma integral seria vital, no caso, fora do horário comercial. Além disso, como uma das questões se tratava de uma questão delicada, sobre furto/desvio de energia elétrica mais conhecido por “gato”, seria importante que alguém imparcial percebesse como esse tema era visto e tratado na comunidade. Na realidade era de interesse da empresa tentar entender o que justifica, e o que levava o cliente a fazer o gato, entre outros fatores envolvidos.As abordagens quantitativas se mostram insuficientes no tratamento de situações em que se procura por dados subjetivos, o que é comum ocorrer quando se trata da opinião bem como na formação sócio-cultural de um determinado grupo social.Assim, a partir da necessidade de se conhecer mais o cliente - uma vez que estar na comunidade em horário comercial passou a não ser suficiente para perceber como esse morador vive e se relaciona – foi desenvolvido em março de 2007 o Projeto de Imersão Social que consistiu em uma pesquisa qualitativa onde a etnografia através da observação participante foi uma das formas encontradas que permitiria buscar na própria vivência com os consumidores os dados necessários para se compreender suas ações, seus hábitos, a forma como pensam e seus valores morais e éticos.
Saúde: Por que o as empresas estão está tão preocupado em entender e atingir o público de baixa renda?Hilaine: Nesse caso, estamos lidando com um bem que se entende por necessário, a energia elétrica, e mais ainda, estamos lidando com um sistema muito próprio onde o desvio de energia elétrica é comum e por muito tempo foi culturalmente aceito. A idéia de que se desviava energia do Estado, no caso a antiga CERJ, dava propriedade a quem o fizesse e era comum, principalmente nos bairros mais pobres, rouba-se do Estado e tudo bem por isso. A noção de que se suja a rua pois a rua não é de ninguém, a energia elétrica também não é de ninguém, é algo que vem do fio, da rede e está ali para quem quiser, como o ar, como o mar...esse pensamento é um fator que contribui para a perpetuação dessa lógica, criou-se uma prática que hoje custa a ser desfeita. No caso da empresa em questão, houve uma tentativa de entender essa lógica, de tentar prestar atenção nos valores morais e éticos que norteiam seu cliente. O que ele valoriza? O que para ele é certo e errado? E ao descobrir, desenhar ações que interrompam a prática ilegal.O grande público cliente da concessionária e onde está o problema é nas áreas mais pobres da cidade, onde está o público de baixa renda, por isso, o projeto foi implementado dentro desse perfil.
Saúde: Como os dados coletados afetam a percepção do mercado? Que tipo de informação pode ser atingida através de uma pesquisa de campo?

Hilaine: Os dados são coletados informalmente, as pessoas vêem o pesquisador como um consumidor/ morador comum, o que faz com que os pesquisados se sintam a vontade para falar o que realmente pensam, o que muito diferente quando ele responde um questionário, o que eu consumo é muito diferente do que eu digo que consumo, ou o que eu gostaria de consumir. Quando fazemos um trabalho de campo, estamos percebendo tudo que está relacionado ao nosso objeto, as falas, os gestos, os discursos prontos, pode-se ir além a uma resposta pronta. Assim, nas conversas informais, coleta-se uma série de dados relevantes que foram percebidos no processo da construção da etnografia, que não é uma simples descrição profunda, que comumente realizada por pesquisadores que não são antropólogos de fato, uma descrição densa não é uma pesquisa etnográfica. A pesquisa etnográfica entre outros fatores faz com o que o pesquisador pense como o seu pesquisado, entenda a sua forma de pensar, agir, ser. Ele faz um desenho acerca da identidade daquele grupo social, suas crenças, sua moral, sua ética, seus gostos, sua religiosidade, etc. Quando se fala em consumo tudo está envolvido, o que faz com que o consumidor abra a sua carteira e decida em pagar por um serviço ou produto é a grande questão.

Saúde: Qual a ligação do dia-a-dia das pessoas com o seu consumo de energia elétrica? Existem paralelos entre as nossas ações cotidianas e como nós consumimos determinados produtos?

Hilaine: Muitos clientes não vêem o consumo de energia elétrica como um serviço. Após o plano real, e a grande profusão de compra de bens de consumo duráveis, como eletrodomésticos e as facilidades que algumas lojas dão em parcelamento de compras, a população mais pobre passou a consumir muito. São refrigeradores, ar refrigerados, TV de 29 polegadas, microondas, home theather e por ai vai... todos ligados de uma só vez, em barracos que não tem um acabamento sequer, em ruas com lamas e sem luz elétrica pública. Ou seja, o consumidor da classe C, D, E, está consumindo como nunca, mas não vê que esse conforto gera custos alem da prestação do carnê da loja. Quanto mais eletrodoméstico, mais conforto, porém maior é o consumo de energia e portanto maior a conta de energia elétrica.Assim, percebi que para esse público em questão o valor da posse do produto é um elemento extremamente importante. Ele precisa consumir, comprar para ter, para se incluir socialmente. Ele compra para ter algo a mais, e não é só status, ele compra para se sentir incluído, se sentir um individuo na sociedade moderna.Ele poderia gastar o mesmo valor da parcela levando a família ao cinema, ou fazendo uma viagem nas férias. Mas esse tipo de entretenimento não é um bem palpável, ele não toca, a viagem se esquece, o filme também, é mais vantajoso para ele comprar o aparelho de DVD e ficar em casa assistindo os mais variados filmes que ele aluga na locadora, ou que ele pode adquirir o DVD pirata.O que percebi é o que para a classe média é algo comum, para as classes baixas é luxo. Ter conforto significa ter bens de consumo em casa. Ficar em casa é, nos finais de semana, um valor, pois sair de casa significa ter custos “com nada”, passagem de ônibus, comer fora, cinema, teatro, não estão dentro dos sonhos de consumo dessas classes.Daí a gente percebe, se eu fosse perguntar a um chefe de família se ele gostaria de viajar com a família ele diria que sim, mas ele não se esforça para fazer isso, não é algo que ele investe. Mas pagar a parcela do carro, pagar a parcela das lojas de eletrodomésticos ele aceita e faz.O que faz com o que o meu cliente pague por determinado tipo de produto e/ou serviço é a grande charada.No caso da empresa concessionária de energia elétrica, o grande problema enfrentado era que os seus clientes estavam em dia com o carnê das lojas de eletrodomésticos, como as Casas Bahia, e também com a Telemar. Pois comprar os produtos e não sujar o nome do SPC ou Serasa era importante para continuar comprando, e como o público do projeto era de maioria nordestina, falar com os familiares e ter uma forma de comunicação era importante. A Telemar criou um plano com taxa mínima para atender esse público, o que a meu ver foi muito inteligente.

Saúde: Que benefícios uma pesquisa de campo como a sua podem trazer para uma empresa?

Hilaine: A pesquisa de campo faz com que você faça uma verdadeira imersão dentro daquele campo, dá para fazer trabalho de campo em todo lugar, seja num supermercado para perceber como os clientes olham e tocam num determinado produto em alguma prateleira, ou por exemplo dentro de um salão de beleza para perceber como os clientes reagem quando usam a tintura X, ou dentro de um restaurante, ou bar, ou dentro de um bairro, como foi o meu caso.Saber o que o cliente necessita e pensa acerca de um determinado produto ou serviço é o sonho de toda empresa. Poder adequar seus produtos e serviços a esse cliente é o desejo de uma empresa que está preocupada com algumas questões, seja melhora do seu produto, ou imagem, ou seja no desenvolvimento de serviços, etc...A possibilidade de estar inserido em uma comunidade, como um morador comum, fazendo parte do seu dia a dia, tendo a possibilidade de mapear seus valores, comportamentos, impressões e hábitos, assim como diagnosticar dificuldades e ainda poder avaliar como os serviços e os produtos de uma empresa são recebidos é uma possibilidade ímpar, e para isso a utilização de uma metodologia da pesquisa social, atrelada a Antropologia Cultural é um diferencial onde dá oportunidade ao pesquisador se misturar à comunidade que está sendo estudada, construindo relações sociais cotidianamente para que de forma natural, tente entender como pensam os moradores da comunidade em questão, permitindo assim colher e interpretar as informações que serão úteis para a empresa.Acredito que o pesquisador antropólogo pode captar essas informações, que muitas vezes são tênues, e junto a outros profissionais, seja de marketing, pesquisa e desenvolvimento, podem criar e avaliar processos de trabalho, assim como produtos, ou a inserção de uma determinada publicidade, enfim, pode-se entender e desenhar a rede que se forma tendo o objetivo da empresa previamente elaborado como foco principal.

Saúde: Como foi realizar essa pesquisa em campo? Você teve uma experiência única de viver em um ambiente que não lhe é comum, quase uma aventura antropológica. Como foi ter a vida de uma outra pessoa?

Hilaine: Não é bem assim, eu não tive a vida de uma outra pessoa, eu tive a minha vida dentro de outro universo. É como se eu me mudasse e fosse fazer minhas relações sociais, so que estas estavam focalizadas para um determinado propósito.E realmente, um trabalho de campo sempre é uma aventura antropológica. Mas eu não inventei essa pesquisa e muito menos esse processo, antes de mim, vários antropólogos desenvolveram suas pesquisas, desde os tempos mais remotos, a cultura material, ou seja, o estudo dos objetos é um elemento comum na antropologia, tentar entender um grupo a partir do que ele consome ou usa os objetos é uma constante desde os tempos mais remotos das ciências, seja antropologia ou arqueologia. A diferença é que hoje desenvolvemos um estudo do tempo presente, com outras finalidades que foram adaptadas para o mundo empresarial.Esse tipo de pesquisa possibilita ter acesso a dados que o grupo ou comunidade considera ser de domínio privado e isto envolve presença física e compartilhamento de experiência de vida, mas também no ingresso do seu mundo simbólico e social, aprendendo suas convenções sociais e hábitos, seu uso de linguagem e comunicação não-verbal.Pesquisas como essa, com esse porte, onde muitos recursos estavam envolvidos, além de tempo, precisam ser pensadas e desenhadas com calma, pois não dá para se voltar no tempo, portanto, houve uma preparação para a entrada no campo, que vai desde a escolha da casa onde morei, a compra de roupas de acordo com a moda local, localização de serviços de saúde e comércio, etc. Alem de procurar possíveis informantes-chave no local.

Saúde: Que habitos da comunidade lhe foram peculiares? Existe muita diferença de costumes entre classes sociais?

Hilaine: Alguns hábitos são peculiares sempre, todo grupo social tem a sua especificidade. Quando pensamos em determinados grupos somos cheios de pré-noções, de pré-conceitos que foram construídos ao longo da nossa trajetória de vida, alguns foram passados para nós, pela família, amigos, colegas, outros construímos baseados nos nossos valores sociais. Todas as vezes que saímos do nosso campo de atuação para algo novo alguns desses valores entram em choque, pois as vezes só os percebemos a partir da distinção, da diferença. Os gostos também funcionam para distinguir, pode-se comprar um objeto, mas a forma como se usa, o jeito ou maneira de utilizar o objeto nos diz muito acerca de quem o comprou.Era interessante ver a moda na rua, ou a forma como os carros eram tratados, envenenados, os tipos de música e lugares onde as pessoas se divertiam também faziam parte desse contexto.Mas sempre deve-se tomar cuidado com o exotismo, ou seja, por ser diferente de mim, eu colocar num lugar de exótico, engraçado ou estranho. As percepções devem estar desprovidas de qualquer julgamento de valor, o pesquisador deve tomar cuidado com seus próprios gostos e valores para não ser subjetivo na análise.

Saúde: Você se surpreendeu de alguma forma com os dados que coletou? Você descobriu algo sobre esse público que foi inesperado?

Hilaine: Quase tudo foi inesperado pois entrei em contato com um público totalmente desconhecido que não teve registro nenhum realizado por nenhum pesquisador.É diferente quando se vai estudar um tribo indígena e antes de ir a campo, Le-se tudo que foi publicado sobre o grupo, ou estuda-se a metodologia utilizada por outro antropólogo, enfim, a teoria trabalha para auxiliar o pesquisador na sua inserção ao campo. No meu caso, eu não conhecia trabalho nenhum parecido, tive que aprender e utilizar outras metodologias fazendo adaptações. Dessa forma, conforme os dados coletados em campo chegavam eu ia reformulando as ações.

Saúde: Como essa experiência lhe influenciou? Seus habitos foram modificados de alguma forma?

Hilaine: A experiência me fez descobrir na antropologia do consumo aliada ao marketing uma possibilidade de atuação profissional. Hoje faço mestrado em antropologia e estudo pesquisa de tendências de consumo na Universidade Federal Fluminense, e espero fazer um MBA em Marketing ano que vem, estou investindo nessa área de atuação pois acredito que meu olhar antropológico possa ser de grande valia para os mais variados projetos.Vejo que muitos colegas pesquisadores têm potencial e preparo para desenvolver pesquisas na área de consumo ou de tendências, mas estão envolvidos na academia e desejam desenvolver projetos próprios. Eu remo contra a maré, tenho um dialogo muito aberto com o mundo empresarial, e pretendo estreitar relações de trabalho no futuro.
Saúde: Pelo que você pode perceber, o público de renda mais baixa se preocupa com questões como alimentação e saúde?Hilaine: O que pude perceber dentro desse público é que existem muitos lugares que vendem lanches rápidos como hambúrgueres e cachorro-quente, as pessoas consomem diariamente, principalmente a noite antes de chegarem em casa. Não há lugar para lazer, portanto não via as pessoas fazendo exercícios como caminhadas ou corridas. Mas havia algumas academias de ginástica, muito simples, que tinham a musculação como principal atividade. O culto ao corpo é presente e nas conversas as mulheres se mostraram mais preocupadas com isso, pois curtem usar roupas mais sensuais e apertadas. As musicas tocadas valorizam as mulheres reconhecidamente gostosas, e na área pesquisada tem 5 x mais salões de beleza e academias de ginástica do que numero de farmácias ou mercados.
Matéria originalmente publicada em http://www.saude.com.br/