quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Um ato de amor – O papel da mulher no consumo doméstico e familiar

Na pesquisa realizada durante o mestrado (Yaccoub, 2010) ao explorar algumas considerações, no cerne da questão o consumo de energia elétrica, julguei relevante dedicar parte do trabalho à análise do consumo doméstico como parte fundamental da cultura material e da sociedade contemporânea, mas, sobretudo para meus interlocutores, o que ficou bastante evidenciado durante o trabalho de campo. Para eles a realização da ligação clandestina, ou manipulação do registro de consumo de energia, era uma forma de adequação da conta ao seu novo estilo de vida.
A partir da compra de eletrodomésticos e eletroeletrônicos facilitados pela nova política econômica, que possibilitou acesso facilitado ao crédito e parcelamentos, passaram a comprar mais (e ligar todos os fios nas tomadas) e, consequentemente, suas contas e gastos aumentaram. Os, até então, denominados “pobres”, muito referenciados sob a égide da carência material, escassez, luta pela sobrevivencia, entre outros (Sarti, 2003) receberam outra categoria e classificação e também passaram a galgar uma espécie de pertencimento a outro status social, este mais valorizado, mais prestiagiado, símbolo de conforto e status.
Ao me relacionar com o grupo e adentrar em suas casas, percebi que o consumo tem um papel central para este grupo. Através da aquisição de determinados objetos, esses indivíduos se sentiam incluídos e poderosos, pois com o consumo conquistavam status, valor simbólico e prestígio. Dentro desse contexto, a mulher possui um papel fundamental no campo do consumo doméstico. É ela quem traz para si a função de ofertar conforto e sensação de bem-estar para sua família, dar tudo para os seus filhos é uma meta, ou dever (muito mais que um direito). Proporcionar conforto está especialmente relacionado à posse de eletroeletrônicos, ou seja, diretamente ligada à demonstração de amor, uma vez que comprar é um ato de amor e é moralmente aceito (Miller, 2002).
Consumo, para a família, é comprar eletroeletrônicos e bens de uso comum, pois isso é moralmente aceito e está relacionado a uma espécie de obrigação, que está introjetada na sociedade. No zelar pela família, o ato de comprar é uma ação que não se finda em si, é um sacrifício devocional, de amor. Há uma obrigação intrínseca de dar aos filhos aquilo que merecem: o melhor. Tanto que a entrevistada se coloca abaixo de sua família ao dizer que, para si mesma, comprou um único vestido barato, mas considera itens básicos os bens eletroeletrônicos que compra para a família. Para ela, toda casa “tem que ter” esses itens para conferir o mínimo de conforto.
O autor aponta que “o ato de comprar é visto como um meio de descobrir, mediante observação acurada das práticas das pessoas, algo sobre seus relacionamentos.” (Miller, 2002, p.19). Para ele, essa “obrigação” ou desejo de oferecer o melhor para a família está intimamente ligada à noção de uma demonstração de amor, ou, como ele mesmo menciona, “um ato de amor”, por isso os indivíduos se sacrificam. Numa situação de escassez, onde o dinheiro é contado, a escolha de um determinado bem, significa no não consumo de outro. Escolher bens duráveis que trarão conforto e bem-estar para a família é moralmente aceito, pois está se investindo na coletividade e não em um consumo individualizado.
Daniel Miller traduz através de sua pesquisa, onde acompanhou mulheres fazendo compras em supermercados, que elas são principais agentes do consumo como um ritual devocional. As estratégias utilizadas e os critérios de seleção de produtos são, na verdade, formas de expressão de amor. Ao comprar ela está levando pra casa o que considera o melhor naquele momento, o seu melhor. Assim, enquanto homens têm uma relação mais utilitarista para lidar com as compras, as mulheres usam esse ritual como formas de expressão de amor e devoção. A mulher devotada pela sua família que cuida da alimentação, limpeza da casa, compra os alimentos preferidos, e castiga marido e filhos ao não comprar determinados itens de suas preferências.
Assim, comprar é antes de qualquer coisa um ato de amor.
Referências:
MILLER, Daniel. Teoria das Compras: o que orienta as escolhas dos consumidores. São Paulo, Nobel, 2002.
SARTI, Cynthia Andersen, A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo, Cortez, 2003.
YACCOUB. Hilaine de Melo. Atirei o pau no “gato”. Uma análise sobre consumo e furto de energia elétrica (dos “novos consumidores”) em um bairro popular de São Gonçalo – RJ. Dissertação (Mestrado) em Antropologia – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, Niterói, RJ, 2010.