sábado, 25 de agosto de 2012

Antropóloga explica por que as pessoas compram mais cosméticos na recessão

Fonte: Folha de São Paulo

"Em tempos de crise, as mulheres se embelezam. Confrontadas com a situação de desemprego e recessão, adultas jovens investem em batons, perfumes e outros produtos que possam realçar seus dotes naturais. Querem se tornar mais sedutoras para conquistar companheiros em boa situação econômica.

Brasil é o terceiro mercado mundial de itens de beleza
Essas afirmações, que bem poderiam fazer parte de uma arenga machista, resumem as conclusões do estudo "Boosting Beauty in an Economic Decline: Mating, Spending, and the Lipstick Effect" (em tradução livre, turbinando a beleza durante o declínio econômico: namoro, gastos e o efeito batom), divulgado no final de maio no "Journal of Personality and Social Psychology", publicação norte-americana especializada em psicologia social e estudos da personalidade.
A pesquisa relaciona dados econômicos dos últimos 20 anos nos Estados Unidos com gastos em uma série de categorias de produto. Demonstra que, nos períodos em que cresce o desemprego, aumentam também os gastos em artigos que podem ser usados para melhorar a aparência, como cosméticos e roupas, enquanto caem as compras de móveis e produtos eletrônicos.
Segundo seus autores, é a comprovação do "efeito batom", como ficou conhecida a tendência de consumidores norte-americanos de, em tempos de crise, manterem seus gastos em bens de luxo, ainda que menos --em lugar de casacos de pele, batons de grife.
A nova pesquisa foi além. Coordenada pela antropóloga e doutora em psicologia Sarah Hill, professora da Texas Christian University, fez estudos experimentais reunindo jovens universitários (82 mulheres e 72 homens de 18 a 28 anos) para tentar descobrir o que está por trás desse comportamento.
Um grupo de homens e mulheres foi confrontado com textos e informações indicando situação de crise econômica e desemprego; outro recebeu textos anódinos para ler. Depois, os pesquisadores trataram de ver os comportamentos dos envolvidos em relação a compras e busca de parceiros. Nesta entrevista, Sarah Hill comenta os resultados.
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Folha - Qual a novidade apresentada pelo seu trabalho?
Sarah Hill - É a primeira demonstração experimental do efeito batom. Nossa pesquisa mostrou que ele é provocado pelo desejo das mulheres de encontrar parceiros e que se mantém mesmo quando os produtos de beleza são caros.
Sua pesquisa comparou dados econômicos dos últimos 20 anos nos EUA. O que foi encontrado?
Descobrimos que o aumento da taxa de desemprego está relacionado com a redução de gastos em produtos que não podem ser usados para aumentar o poder de sedução, como equipamentos eletrônicos. Em contrapartida, pode ser associado ao maior gasto em categorias de produtos que são usados para melhorar a aparência, como cosméticos.
Quais são as causas do efeito batom?
Ele é motivado pelo desejo das mulheres de, durante períodos de recessão, encontrar parceiros com estabilidade e segurança financeira. As principais compradoras são mulheres que buscam companheiros.
Como a senhora prova que são as mulheres as responsáveis pelo efeito batom?
Nossa pesquisa foi integrada por cinco estudos. O primeiro foi uma pesquisa de dados econômicos mostrando a relação entre as vendas de produtos que homens e mulheres compram e as taxas de desemprego ao longo de 20 anos. Os outros quatro estudos, porém, foram testes experimentais que demonstraram uma relação de causa e efeito entre a situação de recessão e o desejo das mulheres de comprar produtos específicos que elas acreditam que as vão tornar mais atraentes para os homens.
Sua pesquisa incluiu gays, homens e mulheres?
Na pesquisa, só analisamos heterossexuais. Nós prevíamos que o efeito batom iria acontecer entre mulheres, mas não entre homens, porque: 1) em resposta à recessão, mudam as prioridades das mulheres, e não as dos homens, no que se refere à escolha de parceiros --elas passam a dar mais peso à segurança econômica, homens não; 2) a primeira maneira encontrada pelas mulheres para aumentar sua competitividade na busca por parceiros desejáveis é realçar seus dotes físicos (o que não é verdade para os homens).
A senhora diz que as mulheres, em tempos de crise, buscam parceiros que ofereçam segurança financeira. Mas isso não vale em qualquer momento econômico?
As mulheres sempre querem ter parceiros com recursos financeiros, mas, em períodos de recessão, elas dão uma ênfase maior a essa qualidade, porque é a que sofre mais impacto. Ainda que os homens também apreciem ter parceiras com recursos, décadas de pesquisas sobre as preferências masculinas demonstraram que essa é uma qualidade para a qual as mulheres dão mais importância do que os homens.
Sua pesquisa afirma que, mesmo durante a recessão, as mulheres dão preferência a produtos de beleza mais caros e luxuosos. Por quê?
Porque acreditam que produtos mais caros são mais eficazes para torná-las mais atraentes. Nós provamos isso apresentando a um grupo uma situação de recessão e pedindo às mulheres que escolhessem entre produtos de beleza caros e suas versões mais econômicas. Elas preferiram os mais caros.
A preferência das mulheres, segundo sua pesquisa, vai sempre para produtos que possam lhes dar vantagens na busca de parceiro, segundo acreditam.
Certo. Se a publicidade não destaca essa capacidade, apresentando outras qualidades (por exemplo, conforto), as mulheres vão ter interesse menor pelo produto.
A senhora compra muitos produtos de beleza? Aumentou seus gastos nessa área durante a recessão de 2008?
Não que eu tenha percebido, mas eu reconheço que posso ter aumentado meus gastos sem me dar conta disso"


 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Estrogonofe, brigadeiro e segurança na favela

Esse último sábado fiquei simplesmente espantada com a quantidade de festas de aniversário que estavam acontecendo simultaneamente na favela. Para uma delas fui convidada com toda pompa e circunstância... aniversário de criança com tudo que tem se tem direito, cachorro quente, pipoca, brigadeiro e, claro, como não poderia faltar, um pratinho de comida que estava pra lá de bem servido. Dia de festa é dia de estrogonofe! Prato que é a verdadeira tradução de dias especiais.
A festa foi muito animada, eu adorei participar. Logo no começo fui eleita fotógrafa oficial do evento, título a mim ofertado devido a posse de uma câmera profissional grande e vistosa. Poses, pedidos de registro e alegria congelada num clique. Essa estratégia me faz conhecer gente, chegar perto, trocar ideias e olhares, tudo isso sem parecer invasiva demais e em prol ao registro do evento.
Chamavam-me de gringa e assim me apresentavam. Minha cor de pele branca me denunciava. Uns brincavam com outros dizendo que eu não falava português o que aguçava ainda mais a curiosidade e abria oportunidades para novos convites.
“Ela tá fazendo um estudo sobre favela? Então ela precisa conhecer minha casa”.
Tanto pelas diferenças afirmadas nas falas, uns diziam que suas casas nem pareciam ser da favela devido à beleza e ao conforto. Era nítida a necessidade e o desejo de quebrar paradigmas e de fato revelar que ninguém ali é insano de morar em um lugar ruim, violento e insipiente como mostra a mídia. Por outro lado, principalmente os mais idosos me viam como grande possibilidade de desabafo, por quererem ser ouvidos, desfiavam-me rosários lotados de lamentações e comparações de um tempo que não volta mais. Um tempo que a favela era apenas uma invasão com cara de cidade do interior, não tinha a atual conjuntura instaurada (super população, violência, infraestrutura precarizada). Em nenhum momento o tráfico é citado, mas está presente em suas falas de forma subtendida. “antes dos meninos era outra coisa”. Meninos é a forma branda e eufemística de tratar de um grande problema para muitos moradores.
Quando perguntados sobre as UPPs, se de fato gostariam de uma unidade ali na área, percebi uma total desaprovação. Segundo os moradores a situação daqueles que moram em regiões pacificadas está muito pior que a deles. Há troca de muitas informações como uma rede de conhecimento de fato. Abuso de poder, humilhação, proibições descabidas são a tônica das áreas pacificadas, situações que não são mostradas pela TV traduzem o conceito real dessa politica de segurança pública.
Durante a festa sentei perto de duas moradoras da Mangueira. Duas negras belíssimas, com suas roupas tigradas, unhas decoradas e cabelos de aplique. Eram de parar o trânsito, como dizem. As aspirantes a passistas (título dado por mim durante a nossa conversa, realmente fiquei muito embasbacada com tamanha beleza genuinamente carioca) são mães de filhos adolescentes que nasceram e foram criados na localidade e contaram que vivem diariamente perturbações após a pacificação. “Nós vivemos um terror, um aborrecimento que a TV não mostra, isso tudo que falam das UPPs é conversa! O que vivemos no dia a dia é um horror e não temos a quem recorrer, somos reféns de policiais despreparados que andam armados, que abusam do poder com a gente, somos revistados todos os dias como se fôssemos bandidos.”
De fato, as duas moças tinham um discurso muito convincente, elaboravam explicações plausíveis sobre o que viam e participavam. E continuavam a falar. “Antes, quando tinha os meninos do movimento, a gente não mexia com eles, e eles não mexiam com a gente, havia um respeito. Eu mesma nunca sequer falei com eles, não havia roubo na favela, quando havia qualquer confusão eles resolviam, ou a confusão acabava antes mesmo de chegar aos ouvidos deles pra não dar problema, o povo se controlava. Mas agora é diferente, estamos sendo roubados! Antes os bandidos que moravam na favela sabiam que não podia roubar, porque senão o tráfico dava um corretivo neles, agora é diferente, esse pessoal sabe o que temos dentro de casa, entram e fazem a festa, nos roubam direto, TVs, dinheiro, DVDs, relógios e até micro-ondas. Sabem que vai ficar por isso mesmo, pois a polícia não irá resolver nada. Tudo é muito mais burocrático, os ladrões aproveitam essa burocracia toda pra agir. Pra quem iremos reclamar? Para os policiais que acham que nós somos bandidos e nos revistam todos dias?”
Elas discorreram sobre vários incidentes envolvendo policias, todos eles foram matéria de reportagens em jornais e revistas de grande circulação. Ficaram perguntando sobre os casos, “você se lembra do caso” e repetiam o ocorrido para logo depois contar o que “realmente aconteceu”. Enfim, eram interlocutoras conscientes e informadas. Uma situação me chamou atenção.
Contaram que num dado momento (não muito distante) uma das policiais, parece que em cargo de comando inclusive (citaram o nome e o cargo, mas, por questões éticas, não me atrevo a repetir), arrumou uma discussão com uma das moradoras e as duas saíram no braço. Houve um desafio por parte da moradora que disse que se ela era mulher tirava o colete a prova de balas e resolvia tudo como mulher de verdade. Assim a policial agiu. Tirou o colete e se atracaram uma com a outra.
Parece que a policial levou a pior, apanhou muito e saiu machucada da briga. Foi assim que as minhas novas amigas me contaram a história. Como é que uma policia dessas irá mudar a imagem que a corporação tem? “Essa história e outras coisas que acontecem não aparecem nos jornais nem na televisão” - repetiu.
Segundo elas, o povo está de “saco-cheio” dos policiais que invadiram o espaço, recebem dinheiro de muitos traficantes que continuam vendendo drogas na localidade e abusam da autoridade proibindo festas e bailes e resolvem tudo com armas de choque. Qualquer discussão, ou enfrentamento, os policiais se utilizam dos choques e sprays de pimenta para resolver a questão.
As falas empolgadas e verdadeiras das duas me mostrou que, de fato, é necessário relativizar tudo que nos é mostrado. As marcas, empresas e companhias estão enlouquecidas, visionando as classes C e D, e procuram entrar nesse mercado que é a favela, influenciados por essa falsa sensação de segurança promovida pelas UPPs. Ai vêm às questões: 1) será que há uma agregação de valor unir a sua marca (ou empresa, ou projeto) a uma política de segurança pública que pode ser um fiasco proferido pelos próprios moradores; 2) o que eles, esses moradores e consumidores pensam a respeito? Será que alguém perguntou? Será que algum pesquisador conviveu em áreas pacificadas para vivenciar tais questões?
Diante do que ouvi sinto (e pressinto) que talvez a gente esteja (e as empresas também) comprando ideias que nem sempre tem relação com a verdade. Vendem-nos cenários que compõem peças teatrais, onde personagens são criados, tipos ideais de bandidos e mocinhos, salvadores e carrascos, inimigos e heróis que talvez não tenham relação alguma com o que de fato ocorre.
A festa de aniversário continuou com crianças correndo pra lá e pra cá; hora de cantar “Parabéns” e minha presença (e da câmera) é exigida perto da mesa do bolo. Preciso registrar o assoprar das velinhas. Bolo cortado, brigadeiros servidos e distribuição de lembrancinhas se dão revelando enfim que era hora de partir.
classe C,marketing,segurança pública,favelas
Texto originalmente publicado no site Mundo do Marketing: http://mundodomarketing.com.br/blogs/diario-das-classes-c-d-e-e

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Sensibilidade cultural

"Hoje em dia gostamos de inventar termos "científicos". Um deles é "sensibilidade cultural", e o usamos para criticar formas de "intolerância cultural" (ou insensibilidade cultural), ou seja, tratar mal pessoas com hábitos diferentes dos nossos ou negar o direito de se praticar coisas estranhas para nossa cultura. A forma mais radical de criticar esta intolerância é dizer que "todo outro é lindo".
Gosto mais da expressão "tolerância" quando era inocentemente aplicada a casas de mulheres que fazem sexo em troca de dinheiro, as chamadas "casas de tolerância". Tenho saudade do uso da palavra "tolerância" neste sentido. Hoje em dia, a expressão "tolerância" é comumente utilizada por fanáticos que querem afirmar que tudo que vem do "outro" é lindo e maravilhoso.
Polêmicas ao redor do uso do véu islâmico têm sacudido a Europa. Até a Olimpíada em Londres não escapa disso. Recusar o direito de se usar o véu (ou similares) seria falta de sensibilidade cultural ou falta de tolerância cultural.
A verdade é que esse negócio de tolerância ou sensibilidade cultural com o outro (da qual partilho) é invenção de ocidental rico. E às vezes, temo, a moçada que gosta de falar disso fica tomando vinho em suas casas em segurança e nada sabem do mundo em chamas por aí. "Outros" são triturados por muitos dos "outros" que teimamos em achar lindo. Só que estes "outros" triturados são invisíveis para olhos acostumados às vítimas "profissionais" da nossa época. A indústria das vítimas oficiais não assimila esses miseráveis de fato em suas campanhas de conscientização chique.
Esses defensores da sensibilidade cultural, antropólogos de boutique, deveriam pegar um avião, sair de Paris, Londres, Nova York e São Paulo, e viajar um pouco. Quem sabe ir para algumas regiões da África, como Sahel (área semiárida no continente), Mali ou norte da Nigéria, dominadas por salafistas muçulmanos fanáticos, e defender a sensibilidade cultural por lá. Queria ver como esses inteligentinhos iriam se virar com esses salafistas que não estão nem aí para suas modinhas culturais.
No Mali, domingo 29 de julho, salafistas pegaram um casal que teve um filho fora do casamento, enterraram os dois até o pescoço e mataram a pedradas. Eles já têm espancado cristãos, destruído seus mausoléus e também destruído locais históricos do próprio islamismo que para eles não seja o "islamismo correto". Qualquer um que não obedeça sua versão da "sharia", a lei islâmica, é castigado fisicamente.
Sabe-se muito bem que no Egito, cristãos coptas são espancados há muito tempo e não têm os mesmos direitos civis que os muçulmanos. Por que os inteligentinhos de plantão da sensibilidade cultural não montam uma agência especial de direitos humanos para os cristãos? Que tal propor um jogo de futebol entre muçulmanos e cristãos no Egito para ensinar a "sensibilidade cultural" à maioria muçulmana lá?
Recentemente ouvi relatos antropológicos interessantes acerca de um país importante do golfo Pérsico. País que já ocupou várias vezes a mídia internacional em destaque.
Lá, mulheres estrangeiras (filipinas, paquistanesas) que buscam trabalho são constantemente violentadas por seus patrões e espancadas pelas suas patroas. Muitas vezes mortas. Todo mundo sabe (o país é minúsculo), mas não importa, porque a população local tem mais direitos dos que os estrangeiros.
Quer um exemplo: você pode trabalhar lá a vida inteira e nunca terá direito de comprar uma propriedade para você. Seu passaporte fica retido na mão do seu empregador, e se ele não quiser te dar quando você pedir, se você não achar alguém da população natural local que interceda a seu favor, você poderá não conseguir sair do país. Se você bater num carro de um cidadão natural do país, você nunca terá razão.
Todo mundo sabe que em países desta região, tocar num muçulmano é considerado ilegal. Você poderá ser preso ou deportado se alguém reportar que você tocou um dos seres "sagrados" naturais da terra. Experimente converter um deles. Cadeia na certa. Que insensibilidade cultural, não?"

Autor: Luiz Felipe Pondé

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/1136172-sensibilidade-cultural.shtml

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Regras para entrada no campo. Há de fato regras?

Quando comecei a estudar antropologia e, mais especificamente, métodos de pesquisa qualitativa, como etnografia e observação participante, muitos professores e colegas pesquisadores orientavam a nos comportar da forma mais simples e neutra possível. A intenção era passar despercebido.

Assim, indicações sobre roupas, o que usar e como usar eram comuns. Cada grupo estudado, que na ocasião era nosso objeto de pesquisa, tinha um comportamento e, para interagir com ele, era preciso preparação. Levar ou não bloco de anotações? Levar ou não câmera? Usar ou não o gravador? Eram perguntas que não davam pra serem respondidas antes do “estar lá” e sentir o clima.

Lembro-me do filme “Xingu”, lançado há pouco tempo que narra parte da história dos irmãos Villas-Boas. Eles não eram antropólogos, mas estavam ali realizando um trabalho de campo, agiam como se fossem; eram indigenistas e realizavam pesquisas etnográficas, aprendiam a língua nativa, o entendimento da cabeça dos índios das mais variadas etnias. Como primeira aproximação, penduravam em varais, espalhados pela floresta, espelhos, facas e serrotes para que os índios pudessem pegar (como um presente) e em troca eles se aproximariam dos brancos; funcionou.

A experiência atual
Quando comecei a entrar e realizar pesquisas em favelas muitos me orientavam a usar roupas básicas, como jeans e camiseta, escolher a cor certa por causa das cores das facções, além de tantas outras regras, nada de celular, nada de câmera, nada de gravador, nada de papel. Pois bem... chego a conclusão, hoje, de que de fato nada disso tem sentido. Só quem está lá é que sabe como proceder, o que usar e até onde poderá chegar.

Na atual favela que realizo minha pesquisa não obedeci a nenhuma dessas tais regras, ou orientações. Não há disfarce. Fui sentindo o clima e a intuição foi me levando, comecei a tirar fotos pelo celular, logo usei uma câmera pequena, que agradou a muito os moradores, que vinham me perguntar se eu estava fazendo as fotos para alguma reportagem (me acharam com cara de jornalista!). Expliquei a situação: estava morando lá para fazer um trabalho para a faculdade sobre o que é morar e viver numa favela; a parte boa e a parte ruim e esperava que eles me contassem e mostrassem como era.

Pronto, sucesso total! Convites choveram. Aumentei o tamanho da câmera, levando para o campo a minha câmera profissional (imponente). O que antes havia pensado que seria complicado e perigoso passou a ser um ponto a meu favor, pedem para sair nas fotos, pedem para terem suas casas fotografadas. Sentimento de invasão? Nenhum pouco. Ainda estou pensando na razão para essa abertura toda, talvez o fato de ser mulher contribua para uma maior aceitação. O desenvolvimento do meu trabalho e a minha interação vem de forma natural. Ou até mesmo a transparência em dizer que a intenção é quebrar preconceitos e contar a verdade deles. A única coisa que tomo cuidado é deixar uma cópia das fotos na associação de moradores, por uma questão ética, todos são avisados e podem copiar, imprimir e enviar a foto como bem quiser.

Certa vez, indo encontrar uma moradora em sua casa para uma entrevista a vejo saindo pelo portão. Ela prontamente me diz que estava indo fazer algo urgente e não poderia me receber. Pergunto meio sem graça o que era e ela me disse que sua unha de acrigel havia quebrado. Ela estava indo naquele momento a uma manicure (na favela mesmo) reparar o dano. Adorei o sentido de “urgência” dela (o que eu não duvido, pois sou mulher e entendo perfeitamente) e com toda cara de pau do mundo pedi para ir junto. Ela topou. Saímos pela favela, entramos em uns becos, em uns corredores e chegamos à casa da manicure que trabalha em um salão chique da Zona Sul, sendo que nas segundas-feiras (seu dia de folga) atende em casa para tirar um ganho a mais.

Papo vai, papo vem e eu lá reparando na casa da manicure; TV de LDC, geladeira frost free, home theather... (olhar antropológico em ação), até que a mesma diz para minha entrevistada: “Ahhhh, nem... aqui não tem nenhum esmalte que seja a sua cara, só tem esses assim, ó, apagadinhos”. Mais que depressa pergunto para a manicure: “E como seria um esmalte com a cara dela?” Achei curioso termos a cara de um esmalte. Ela me respondeu: “Ah... um assim cheguei! Um bem divertido, pra cima, alegre como ela!”

Lembrei de um esmalte Revlon que havia comprado e não tinha coragem de usar por causa da cor laranja fluorescente. É nessa hora então que percebo a minha brecha. Disse para ela não pintar as unhas de cor nenhuma naquele momento, pois no dia seguinte eu lhe daria um esmalte importado que era, sim, a cara dela.

Bem, nem é preciso dizer que funcionou. E muito! A minha mais nova amiga agora tem unhas laranja que são, de fato, a cara dela. Alegre, vibrante e chamativa. E uma relação se iniciou ali. Ao invés de ser básica, ao invés de ser invisível ou neutra, ao invés de ser natural, tenho experimentado o oposto e tem dado resultado, pois quanto mais os outros sabem que sou de fora, quanto mais eles sabem que estou pesquisando, mais eles me deixam entrar em suas vidas. Ao invés de levar espelhos, serrotes ou facões, tenho levado esmaltes. Fico me perguntando se as índias não iriam gostar também... esmaltes vermelhos, azuis, laranjas.
Regras para entrada no campo. Há de fato regras?

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Madame Bovary – a mulher e o consumo conspícuo feminino

Muitos casos observados acerca do consumo feminino em muitos trabalhos de pesquisa parecem-me uma versão moderna do romance de Gustave Flaubert de 1857, Madame Bovary. A antropóloga Laura Graziela Gomes da Universidade Federal Fluminense contextualizou e utilizou como pano de fundo a história de uma mulher, Ema Bovary, pequeno-burguesa, criada no campo, mas que passou a ter aspirações estatutárias através da literatura. Ao se casar com um médico, o Charles Bovary vê a possibilidade de ascensão social. Influenciada pelos romances e padrões requinte e luxo contados em histórias sentimentais somado ao tédio do casamento, inicia uma busca por esse ideal, a imitação de um estrato social superior altamente valorizado por ela, que se torna possível através do consumo.
Em Madame Bovary, a crise é marcada pelas escolhas e decisões que Ema toma a partir do rompimento com o habitus de seu grupo social – que estabelecia, além de certas normas estéticas, um certo comedimento -, na medida em que constrói para si um gosto próprio, baseado no luxo e cultivado de certa forma completamente estapafúrdia.
A maneira como Ema lida com o dinheiro (do marido) fazendo com que esse também fosse instrumento de prazer e de luxo focalizado em sua necessidade individual foi um dos elementos que marcaram o romance de Flaubert, o outro ponto foi o adultério, mas que nosso caso aqui, não cabe qualquer aprofundamento analítico.
A antropóloga Laura Graziela Gomes assinala que “Ema Bovary é um primeiro instantâneo desse novo personagem social – o consumidor moderno – tal como conhecemos nos dias de hoje, com todas as suas contradições, paradoxos e ambiguidades”. A autora aponta que a pequena burguesia, estrato social que a personagem estava inserida, “era considerada um dos baluartes da ética do trabalho e da poupança”. Dessa maneira, Ema era a representação da ameaça ao patrimônio familiar, pautada na “imagem da dilapidação e da prodigalidade”…
No romance de Flaubert, Ema é descrita como uma mulher que se interessa por bens mundanos “fora de sua realidade imediata” os romances lidos por Ema são extremamente depreciados pelo autor, parecendo inclusive culpá-los pelas aspirações sociais da personagem. Segundo Flaubert, o problema estaria em como ela leu e fruiu esses livros, se apropriou deles para buscar ou construir o sentido de sua vida, ou seja, na forma conspícua. Simplesmente consumir para aparecer, para mostrar, para exibir.
Trazendo para o nosso contexto contemporâneo, uma versão daquela pequena burguesia descrita por Flaubert, baseada do trabalho e planejamento orçamentário, que vê no consumo feminino uma “possível ameaça” ainda existe. As mulheres atuais talvez não sejam influenciadas por romances e histórias de nobreza, mas hoje existem as novelas, com atrizes e modelos belíssimas (que também estão em capas de revistas) que ditam moda.
O universo feminino está em contato com novos padrões e estilos de vida e desejam se espelhar neste tipo de modelo, que influencia diretamente na forma de consumir (escolhas e gostos), como a Ema, as mulheres desejam cercar-se daquilo que julgam ser belo, requintado, uma forma de pertencimento e diferenciação entre seus iguais.
Tal como a personagem de Flaubert, em proporções distintas e menores (já que o fim de Madame Bovary é deveras trágico), alguns grupos de mulheres na atualidade, contraem dívidas, fazem empréstimos e elaboram táticas de controle orçamentário para conquistar os bens de consumo que não lhes cabiam, dado seu valor simbólico e financeiro.
Será que uma mulher simples, oriunda de classe popular sabe o valor de um vaso de murano? Ou um espelho de cristal? Ou uma cadeira Luis XV? Obviamente que seus hábitos e capitais não lhe conferem essa expertise, porém, tal como Ema, utilizou-se de outros meios apara apreender e imitar o que a classe superior valoriza, trazendo para dentro de sua vida, esses bens que de alguma forma faziam-na se sentir parte daquele mundo.
O romance Madame Bovary, como aponta Laura Graziela Gomes, foi o primeiro registro do consumidor moderno, “face a face com os dilemas éticos advindos de suas escolhas, baseadas cada vez menos em critérios de necessidade (utilitarismo), mas atendendo sim ao exercício do gosto e à busca do prazer e da felicidade pessoal em detrimento da felicidade coletiva”
A polêmica instaurada foi causada exatamente devido ao gosto apurado pela personagem pelo design, apesar de suas condições sociais, assim como ocorre com muitas consumidoras que se utilizam de meios não tão “convencionais” para comprar seus objetos de desejo, se essas mulheres oriundas das classes populares emergentes, a nova classe C ou a Ema Bovary pertencessem a uma camada social elevada, esse gosto e forma de consumo não causaria qualquer tipo de crise ou impacto, uma vez que a aristocracia é dotada de um habitus que contribui para sistema de valoração desses bens; além do fato que e a “prodigalidade e dilapidação não eram novidades nesse grupo social”. É certo que nem eram visto como dispêndio e sim investimento dado o valor conferido aos objetos adquiridos, pautados na sua origem, história, design, matéria-prima, etc.
Qualquer semelhança com as elites populares demonstradas na novela atual da Rede Globo, Avenida Brasil, não é mera consciência.