quinta-feira, 24 de maio de 2012

A conveniência é o rito da localidade

Fonte: http://mundodomarketing.com.br/blogs/diario-das-classes-c-d-e-e
O código que se impõe ao usuário do bairro ou favela é chamado de “conveniência”, e possui duas leituras. Revela-se pela maneira de apresentar-se perante a sociedade, o que veste, como se comporta, entre outros fatores que reafirmam e legitimam praxes e usos estabelecidos. De outro lado, “o léxico dos benefícios”, a conformidade com o sistema de regras. Moradores de favelas e de muitos bairros convivem com duas moralidades, que muitas vezes se opõem.
O historiador Michel De Certau, ao tomar o cotidiano como objeto de estudo, aponta que essa conveniência estabelece leis, regras de condutas que devem ser obedecidas, ou, como ele aponta, “regras do uso social” que auxiliam “no jogo dos comportamentos”, impondo uma
"...justificação ética dos comportamentos, que se poderia medir intuitivamente, pois os distribui em torno de um eixo organizador de juízos de valor: a “qualidade” da relação humana tal como ela se desenvolve nesse instrumento de verificação social que é a vizinhança não é a qualidade de um ‘know-how social mas de um “saber-viver-com”; à constatação do contato ou do não contato com este outro que é o vizinho...sem somar-se a uma apreciação, uma fruição desse contato". (DE CERTEAU, 2008, p.49)

O autor afirma que, nesse momento, entra-se no terreno do simbólico, onde todas as relações são “regulação interna dos comportamentos como efeito de uma herança”, seja ela afetiva, política ou econômica. O lugar é o palco dos usos estabelecidos por esses usuários que possuem essa ligação, compulsória ou não, mas que existe e é obrigatoriamente exercitada. “A conveniência é o rito do bairro”, cada usuário (ou consumidor) se submete às suas regras em prol da boa convivência, manutenção do relacionamento, no qual há trocas. Muitas vezes, são relações tão próximas que chegam a ser comparadas a parentais.

Trazendo essa teoria para o tema dos usos dos serviços públicos essenciais, por exemplo a energia elétrica, temos uma herança instaurada, seja no bairro, em uma favela, em uma vila, dentro de uma casa: o da manipulação da energia elétrica. A ligação clandestina popularmente conhecida por “gato” se consolidou, por décadas, pelas “maneiras de usar”, pautadas na permissão conferida pela estrutura hierárquica estrutural brasileira, de apropriação do público que não tem dono (a rua) pelo privado (a casa). Luis Dumont, em Homo æqualis (2000), destaca que, na ética das sociedades hierárquicas, o valor do indivíduo e suas necessidades estão sempre submissos aos valores e interesses da sociedade. Nas sociedades individualistas, o indivíduo impõe suas necessidades e valores acima dos interesses do todo. As pessoas agem a partir de uma lógica privada, sem se importar com o ônus dos outros, que terão ao pagar pelos “gatos” deles.
No entanto, ao entrar no universo das favelas, onde a universalização do serviço realizado pelas concessionárias é precária por vários motivos, como falta de segurança que deve ser garantida pelo Estado, assim como também pouco interesse comercial das próprias concessionárias na regularização dos serviços temos outras questões para se pensar. O “gato” vira arranjo técnico, uma saída emergencial para a garantia do uso de bens e serviços. Como questionar, criminalizar, ou até mesmo classificar este fenômeno dada as condições naquele contexto?
Mesmo não partilhando moralmente dos contra-usos, dos “gatos”, me vejo atualmente com este dilema, para ter internet, energia elétrica ou água potável, ou eu recorro aos “gatos” e toda sua rede de técnicos comunitários ou simplesmente vivo sem os serviços essenciais que são direito de todo cidadão. Lidar cotidianamente com esta realidade me faz enxergar que é preciso sobretudo relativizar classificações. O “gato” para cidade formal (o bairro por exemplo) é a extensão de rede que muitos possuem na favela, produzidas pelos eletricistas (ou curiosos) locais com a simples finalidade de fazer garantir um direito que lhes é negado, ser consumidor.

Referencias Bibliográficas utilizadas:
CERTEAU, M. De. GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2 : morar, cozinhar. Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.
DUMONT, Louis. Homo Aequalis. Gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru, EDUSC, 2000.
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sexta-feira, 11 de maio de 2012

Churrasco e fartura: festa boa é festa que tem sobra

Fui a uma festa muito interessante em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Era um chá de bebê que visava à arrecadação de fraldas descartáveis. Para isso, foi feita uma grande festa, com bolo, docinhos, brincadeiras com os noivos e, é claro, um churrasco.

O que me chamou atenção foi exatamente essa tendência de se comemorar tudo com um churrasco. Na chegada ao condomínio popular (desses tipo COHAB), havia um complexo de salões de festas com três espaços diferenciados para comemorações. Um deles ficava à beira de uma quadra de futebol bem simplória, o outro ficava junto a uma cantina e o terceiro (onde ocorreu a festa para a qual fui convidada) era maior e ficava no andar de cima.

Perceptivelmente maior, com melhor acabamento de pisos e azulejos. O mais impressionante é que todos estes lugares continham uma churrasqueira.
Neste espaço não havia ventilação necessária e, é claro, o lugar tinha um fog que nos deixava defumados. As carnes e pães com maionese estavam dispostos na grelha, e o churrasqueiro improvisado dava seus pitacos e ostentava suas técnicas nada convencionais para arrumação, tempero e corte das carnes especialmente compradas para ocasião.

Eu não sei por que, mas a linguiça imperou. Era linguiça com farofa, com molho, com pão... Depois de algumas horas me fazia a pergunta se o churrasco era de linguiça. Ate que surgem os frangos e os comentários acerca do tempero tomam conta da mesa. Comida boa é comida temperada... e farta.
Uma coisa que achei bem curiosa foi que em uma das mesas havia um saco plástico com um pano molhado dentro. O saco ficava aberto e após beliscarem a linguiça e o frango, passavam o dedo no pano para tirar a gordura. Experimentei e deu certo. Pra que guardanapo? O grupo tinha suas próprias estratégias e, apesar de nada convencionais, funcionavam. É o saber prático se fazendo presente.
Havia também uma mesa com vários vasilhames milimetricamente arrumados. Eram vasilhas bem grandes que foram sendo preenchidas ao longo da tarde... arroz, feijoada (ué, não era churrasco? Me perguntei), farofa e macarrão (macarrão?). Sim, macarrão com muito ovo de codorna.
Após a grande fila que se formou (e eu não pude fotografar por motivos de direito de imagem), a mesa de doces foi saqueada. Não, não era para comer... Era para levar. Uma horda de senhorinhas começou a juntar lembrancinhas e doces para levar. Nessa hora, copos plásticos vazios eram disputados, assim como os sacos plásticos de supermercados. As bolsas enormes pareciam ter sido escolhidas com esse propósito – para caber mais.
Outro movimento ocorreu quando o bolo foi partido: pedidos e mais pedidos de bolo para os que não puderam comparecer, mães, pais, avós, filhos... Pedaços e mais pedaços foram sendo partidos, e eram enormes... todos enrolados em papel alumínio.

Foi ficando tarde e eu continuava la... Até que os donos da festa começaram uma campanha para que os parentes mais próximos levassem parte da comida que havia sobrado e a luta por vasilhames de plástico menores começou.

O prazer de sair da festa com a sensação de ter sido bem servido, e mais, de sair de lá carregado de quitutes para o dia seguinte era notório. Aquela, sim, tinha sido uma boa festa. Problema em sair defumado? Nenhum. Problema em não ter garçom para servir? Nem repararam. A música alta, evangélica, tocando sem qualquer embaraço? Nem perceberam.

Foi uma tarde prazerosa, com muita comida, muita fartura e, portanto, muita diversão. Até que a anfitriã senta ao meu lado e diz: “O melhor da festa é quando todo mundo vai embora e podemos organizar tudo que queremos carregar”. Concordei com um sorriso no rosto e fiz a minha marmita. Afinal de contas, eu não iria contrariar a dona da festa.